Li essa estória num lindo livro da extinta Livraria Quaresma, do Rio de Janeiro: "Histórias do Arco da Velha", de Viriato Padilha. É uma estória boa para contar, com algumas alterações, dependendo de quem vai ouvi-la. Aqui vai na íntegra.
A noiva de São Pedro
Jesus Cristo e seus dois amados discípulos, Pedro e João, passeavam uma vez pelo mundo, como Nosso Senhor costumava fazer para ver de perto o estado dos homens e das coisas.
Enquanto caminhavam, discorriam sobre vários assuntos.
— É preciso que te cases, Pedro, — disse de repente o Salvador.
— Casar-me, eu! na minha idade, mestre?
— Sim, é preciso que te cases.
— Mas a quem quereis então que despose, mestre?
— À primeira rapariga que encontrarmos no caminho.
— Seja, pois assim o quereis.
Pouco tempo depois, encontraram os três uma rapariga feia e suja, uma criada do campo, de tamancos e com as pernas cheias de lama do curral.
— Então, Pedro, — disse Jesus Cristo vendo-a, — eis ali a que será tua mulher!
— Não, meu Senhor peço perdão, mas com essa não me caso eu, — respondeu Pedro fazendo uma careta.
— Porque não a queres, então?
— Por quê?; Vede quanto é feia e suja, e nem ao menos moça.
— Tu também não és moço, nem tão belo rapaz, como talvez penses. Mas, enfim, como não queres essa, há de ser agora a primeira mulher que encontrarmos nesta estrada.
— Prefiro isso, porque espero que será impossível encontrar pior.
E continuaram o caminho.
Não tardaram a encontrar uma velha apoiada sobre um cacete, a cabeça trêmula, os pés atravessados e mais suja ainda do que a primeira.
Nosso Senhor riu-se, vendo-a, e, voltando-se para São Pedro, disse:
— Agora, eis aqui a tua mulher.
— Nunca, — respondeu Pedro, voltando a cabeça e fazendo uma horrível careta.
— Antes a primeira; mas não quero nem uma nem outra...
— Acho-te bem difícil, meu amigo, mas não importa. A primeira que encontrarmos agora é preciso que aceites, qualquer que seja.
— Perfeitamente, e seja o que for, não será jamais coisa pior.
E, continuando o seu caminho, encontraram outra velha, curvada sobre um bastão nodoso, e arrastando com dificuldade os pés; além disso, era corcunda e zarolha, não tinha na boca senão dois dentes compridos e negros, que estremeciam a cada passo que ela dava.
Dir-se-ia uma verdadera feiticeira. O seu corpo era coberto de sujos molambos, e, tão mal cheirosos, que causavam náuseas ao mais forte estômago.
— Agora não podes mais recusar, Pedro; eis a tua mulher. — disse Jesus.
O pobre Pedro soltou um grande suspiro, voltou a cabeça de desgosto, e não pronunciou uma palavra.
— Não há que hesitar, — continuou o Salvador, é preciso que a desposes, já que desdenhaste as outras, que eram talvez um pouco melhores.
— Casarei na primeira aldeia que encontrarmos.
E continuaram o caminho acompanhados da velha, que apesar da sua idade e do seu miserável estado, estava satisfeita de encontrar enfim com quem casar. Mas Pedro não queria caminhar ao lado dela, nem mesmo olhá-la, e Nosso Senhor gracejava, dizendo que fosse mais galante com a sua noiva, que lhe desse o braço. Ele marchava alguns passos atrás, com a cabeça baixa e muito triste.
Um milagre de Jesus
Chegaram assim a uma forja. Havia ali um ferreiro muito afamado no país e de quem não se falava senão com respeito, chamando-o sempre grande ferreiro; o primeiro de todos os ferreiros.
— Entremos um pouco nesta forja, — disse Nosso Senhor aos seus companheiros de viagem.
Entraram todos quatros, e Jesus disse ao mestre ferreiro:
— Dê-me licença, ferreiro, de fazer uma boa têmpera sobre a sua bigorna, pois também sou ferreiro.
O ferreiro olhou com desdém para aquele que lhe falara, ergueu os ombros e não respondeu; mas o seu ajudante disse:
— Não é assim, meu bravo, que se fala a meu mestre; pois deveis saber que é o primeiro ferreiro do mundo, e não há igual nem mesmo que dele se aproxime.
— Como é então que preciso falar a seu mestre?
— Desta maneira (e com o chapéu na mão): "Salve, grande ferreiro, mestre, o primeiro dos ferreiros; terá a bondade de me permitir que faça uma têmpera sobre sua bigorna?
O Senhor repetiu as palavras do ajudante.
— Com prazer, agora que me falas como me convém.
A mãe do ferreiro, velha e caduca, aquecia-se ao pé do fogo; Jesus Cristo suplicou-lhe que se afastasse um pouco, e, tomando a noiva de São Pedro, atirou-a ao fogo.
— Deus! que fazes, malvado? — exclamou a mãe do ferreiro.
— Deixa-me fazer, vovó, e não se incomode; é para o seu bem, como vai ver.
— Ainda bem, — disse São Pedro, — eis-me livre desta feiticeira.
Pouco depois, Nosso Senhor, retirou a velha do fogo, com as tenazes e pondo-a sobre a bigorna, como uma massa de ferro vermelho que se tira da fornalha, disse:
— Vamos, cada um que tome um malho e bata forte.
E tomaram cada um o seu malho e bateram a velha sobre a bigorna, como se fosse de ferro; São Pedro, principalmente, malhava de rijo, com verdadeiro prazer.
Depois, Jesus tornou a pô-la no fogo, retirou-a e bateram-na de novo. E assim três vezes. À força de passar no fogo e de ser batida, a noiva de São Pedro perdeu a corcunda, tornou-se uma mulher jovem, bela e tão perfeita, que os assistentes ficaram boquiabertos.
— Então, ferreiro, mestre ferreiro, o primeiro dos ferreiros, és capaz de fazer outro tanto?, — perguntou o Salvador.
Ele nada respondeu e mal disfarçava o seu pasmo.
— Então? embora se faça chamar mestre ferreiro, o primeiro dos ferreiros achou o seu mestre, parece-me.
— É possível, mas experimentarei todavia, porque me custa crer que haja ferreiro no mundo capaz de fazer um trabalho de ofício, que eu não possa fazer também.
O ferreiro e sua velha mãe
Os três viajantes partiram então e a linda mulher acompanhou-os.
São Pedro estava agora muito feliz de ter noiva tão jovem, tão bela, e já não se fazia rogar para se aproximar dela.
Apenas deixaram a forja, o mestre ferreiro disse:
— Farei também o que aquele homem fez e não se dirá que achei enfim mestre.
E tomando sua velha mãe, atirou-a ao fogo.Mas ai! quando a retirou da fornalha, para batê-la na bigorna, a cada golpe que batiam, ele e o seu companheiro, o sangue jorrava de todos os lados, com pedaços de ossos esmagados.
Batiam cada vez mais, sem verem chegar a mulher bela e jovem que esperavam.
Eis o ferreiro desolado de ter assassinado a sua boa mãe.
Correu atrás dos três estrangeiros. Viu de longe que subiam uma encosta escarpada, e gritou-lhes:
— Eh! eh! não me ouvem? — Senhores estrangeiros!
Eles bem ouviam, mas de propósito faziam ouvidos de mercador e continuavam a caminhar.
Então o ferreiro mudou de linguagem e gritou-lhes:
— Mestre, caro mestre, em nome de Deus.
— Que há, bom homem? — perguntou Nosso Senhor. E parou.
— Ai aconteceu-me uma grande desgraça!...
— Que lhe aconteceu então mestre ferreiro, o primeiro dos ferreiros?
— Minha mãe, minha pobre mãe morreu!
— Como assim?
— Ai! quis fazer como o senhor fez para remoçá-la e matei-a!
— Como! Pois o amigo me tinha dito que era um mestre ferreiro, que não tinha igual no mundo?
— Ah sim, mas agora vejo que não valho nada ao pé do senhor, e peço-lhe perdão.
— Oh! certamente. O mestre amava sua mãe? E tem saudades dela?
— Oh! sim; tenho saudades do fundo do meu coração; restitua-ma.
— Pois bem, volte e encontrará sua mãe viva e de saúde. Mas para outra vez, seja mais modesto e não diga que não há mestre na terra.
O ferreiro voltou à forja e encontrou sua mãe, que se aquecia sentada em um banco ao pé do fogão. Foi uma boa lição, para ele não ser tão orgulhoso.
— E São Pedro casou-se? — perguntarão os nossos leitorezinhos.
A história não o diz.