domingo, 31 de março de 2019

Conto "Uma sopa especial"

Este delicioso conto é uma versão sueca de "A sopa de pedra", tema muito recorrente no folclore brasileiro. Eu o encontrei no livro "Un mundo de cuentos - cuentos populares de los cinco continentes", de Anna Gasol e Teresa Blanch, com ilustrações de Mercè López. A tradução e adaptação são minhas.

"Era uma vez uma velha que morava em uma casinha no meio de uma densa floresta.

Um dia de primavera, no final do meio-dia, a mulher se deu conta de que estava com fome e foi até a despensa para ver o que podia cozinhar. Um pouco decepcionada, viu que só tinha um pedaço de carne e dois ovos, além de algumas poucas hortaliças.

- Não sei se preparo um cozido de carne com batatas ou um par de ovos fritos e pepinos em conserva -  ela disse em voz alta

Quando finalmente decidiu que o mais rápido era fazer ovos fritos, ao colocar manteiga na frigideira, viu pela janela da cozinha um mendigo procurando algo entre as árvores.

- Posso ajudar? ele perguntou, abrindo a janela.

- Espero não incomodar - respondeu o homem. - Estou à procura de frutos silvestres. Disseram-me que são abundantes nesta parte da floresta.

- Você já almoçou? - a velhinha perguntou a ele. - Você quer fazer uma torta?

- Oh, hoje só vou comer a sobremesa. Eu me conformo com pouco.

A velha ficou com pena.

Ela até gostaria de convidar o homem para comer, mas a despensa estava vazia e ainda faltavam dois dias para conseguir provisões do mercado. "Eu mal tenho para mim", ela pensou e se dirigindo ao homem, lamentou:

-Sinto muito, mas não posso te convidar.

- Não importa, obrigado mesmo assim, - disse o andarilho. - Embora eu tenha uma ideia. Se você me emprestar um recipiente e um pouco de água, posso fazer uma sopa muito especial.

Enquanto falava, começou a procurar dentro do surrão que levava pendurado no ombro.

- Olhe, - ele disse finalmente, e mostrou um pedaço de unha de porco, - Com isso eu posso preparar uma sopa deliciosa.

A mulher pensou que não perderia nada se o deixasse acender um fogo na frente da casa e ferver um pouco de água. Afinal, poucas eram as pessoas que vinham até ali e isso lhe proporcionaria um pouco de distração. Assim então, encheu uma panela com água enquanto o moço acendia o fogo. Quando a água começou a ferver, ele colocou na panela o pedaço de unha.

- Esta unha já foi fervida cinco vezes, - ele acrescentou. - Ainda faz uma boa sopa, mas se tivesse um pouco de sal, seria muito melhor.

- Isto não é um problema. Vou pegar o sal.

Pouco depois de colocar o sal, o homem disse:

-Estará pronta dentro de um instante. No entanto, lamento dizer que não será a sopa mais especial que já cozinhei. A unha foi cozida cinco vezes e pouca substância lhe restou. Se eu tivesse um pouco de farinha...

-Eu vou ver se sobrou alguma coisa - disse a velhinha.

Quase não tinha mais, porém o homem sacudiu o resto que havia no recipiente e depois mexeu o caldo com uma colher. A mulher achava que da mistura realmente saía um cheiro muito especial, embora tivesse dúvidas sobre seu sabor.

-Se eu pudesse adicionar um pouco de carne e algumas batatas... A verdade é que a sopa ficaria muito melhor, - disse o espertalhão. - Mas claro que se não pode ser, o que vamos fazer?

Na despensa havia a carne e as batatas para o ensopado. Ficaria sem o guisado, pensou a velha, mas a sopa estava quase pronta e se serviriam para melhorá-la...

O homem acrescentou os ingredientes e continuou mexendo o caldo que começava a cheirar muito bem.

- Vai ficar deliciosa, - disse ele, - mas se eu tivesse uma cebola, uma cenoura e um pouco de banha de porco... hummm...

Já com água na boca, a velhinha não hesitou. Entrou em casa, foi em busca dos ingredientes restantes e os adicionou à panela ela mesma.

- Pronta! - disse o homem depois de ferver um pouco mais. 
Ele provou o sabor e exclamou:  - Deliciosa!

A mulher, que não pôde resistir ao cheiro daquela sopa, de repente se lembrou que estava com fome. Foi na cozinha pegar pratos e colheres e convidou o homem para se sentar em sua mesa. Juntos, compartilharam a deliciosa sopa, os ovos fritos e os pepinos em conserva.

-Deliciosa! - exclamou a mulher quando terminaram de comer. - Eu nunca poderia imaginar que com um simples pedaço de unha de porco se pudesse cozinhar uma sopa tão deliciosa!"

In: Un mundo de cuentos, de Anna Gasol e Teresa Blanch (página 34)
2012, Editorial Juventud, Barcelona, Espanha
versão online em Muchos Cuentos

quinta-feira, 14 de março de 2019

Conto: "O dia em que o mar perdeu a cor" - Patricia Barbadillo


Esse lindo conto eu traduzi da estória da escritora espanhola Patricia Barbadillo publicada numa coletânea no livro "Cuentos azules", Ediciones SM. É perfeito para contar para crianças e adultos.
"Uma manhã, uma notícia correu pelo reino. O mar havia perdido sua cor. Em vez do azul turquesa, que mudava de intensidade ao longo do dia, agora só se via a cor amarela da areia ou o cinza das pedras. 
Os peixes assustados nadavam nervosos, provocando redemoinhos, achando que estavam em um aquário em vez de no mar.
Os polvos agitavam seus tentáculos soltando jatos de tinta, as merluzas abriam os olhos tentando entender o que estava acontecendo, e os caranguejos corriam para se enterrar na areia até que tudo tivesse passado.
Os cidadãos do reino se aglomeravam na praia com a boca aberta.
- Que terá acontecido? Já não podemos contemplar nosso mar tão azul... Quem terá roubado o azul do mar?
O rei, muito preocupado, mandou buscar os sábios.
- Quero que façam todos os estudos e experimentos necessários para que o mar volte a ser azul.
E os sábios passaram dias e dias na beira da praia, tomando mostras de água e anotando números enormes em seus cadernos.
No entanto, não conseguiram devolver ao mar a sua cor.
Os peixes, pouco a pouco, foram embora daquele mar tão esquisito, buscando outros mares e outros oceanos azuis e, com sua marcha, os pescadores não puderam tirar seus barcos de pesca, que ficaram empilhados na costa. 
Um dia, um daqueles sábios acreditou ter encontrado a solução.
- Não tem mais remédio, majestade. Terás que entregar vossa filha ao mar. Seu sangue azul devolverá a cor ao nosso mar.
- Que barbaridade! Como irei fazer tal coisa? - exclamou o rei. -  Mandarei emissários para outros reinos para que encontrem quem possa nos ajudar, mas não sacrificarei minha filha.
Uma manhã chegou à praia um jovem de aspecto extravagante. O cabelo muito longo e a barba comprida só deixavam ver uns olhos muito azuis.
Quando se aproximou da beira da água, todos lhe abriram caminho, assombrados pelo brilho do seu olhar.
 O jovem viajante ficou de frente para o mar, olhando intensamente para as ondas. Passaram-se os dias e assim continuou. Tanto fazia ser de noite ou dia, sem prestar atenção às perguntas que lhe faziam, ele continuava olhando para o mar sem falar, sem se mover, sem fazer o menor gesto.
E, pouco a pouco, o mar foi recuperando sua cor. Um azul muito pálido a princípio, logo mais parecido com o azul do céu e, por fim, com a cor turquesa.
Os peixes voltaram ao mar onde sempre haviam nadado, os cidadãos aplaudiram o jovem, o rei ofereceu-lhe os presentes mais maravilhosos e a princesa imediatamente se apaixonou por ele.
- Como você conseguiu devolver a cor ao mar? - O rei perguntou a ele.
- Por tanto tempo olhei para ele, com tanto esforço, e tão grande era o meu desejo de salvar a vida da princesa que, no final, as águas conseguiram pegar dos meus olhos a cor azul que lhes havia escapado.
- Que força! Que vontade!
- Tão somente um desejo poderoso - respondeu o jovem.
O rei, claro, despediu o sábio que quis entregar a princesa ao mar. O sangue dela é tão vermelho como o seu ou o meu. E aquele mar para sempre conservou sua cor azul-turquesa. Tão famoso se tornou que ainda hoje as pessoas viajam de lugares bem distantes para banharem-se em suas águas, sentindo com o azul envolve tudo..."

Ilustrações: Chata Lucini

sábado, 9 de março de 2019

Estórias em Barcelona


Conto adaptado da narração de Blai Senabre

"Era uma vez um rei que adorava queijos. Ele gostava tanto que os fabricava em seu próprio palácio e por todo o lado o que se via era queijos e mais queijos. Queijos de todos os tipos e tamanhos. Defumados, fundidos e fedidos. Com ervas, pimentas ou picles. Queijos por toda a parte. Apesar do belo e florido jardim, o aroma que imperava ali era de... adivinhe?... Exatamente isso: queijo.

Um dia particularmente quente, o odor estava insuportável. Até para o rei que gostava tanto de queijo. Ele mandou que abrissem as janelas para que entrasse um ventinho e amenizasse aquele futum horrível.

Péssima ideia.
Carregado pelo vento, o cheiro das montanhas de queijo estocadas no palácio chegou até uma toca onde viviam centenas de ratinhos. Todos sabem que a comida favorita do rato é... adivinhe?... Exatamente isso: queijo.
Enlouquecidos pelo odor daquela delícia, as centenas de ratinho se puseram a correr em direção ao palácio real. Os guardas nada puseram fazer para deter a invasão da massa de roedores que, em poucos minutos, já tinha se jogado contra tudo quanto era queijo que havia no palácio. O rei, coitado, subiu no trono e de lá gritou chamando os conselheiros. Eles acudiram pressurosos, alguns em cima de pernas de pau com medo dos ratos.
- Conselheiros, precisamos fazer algo para acabar com esses ratos, senão eles acabam com os meus preciosos queijos!
Pensa que pensa, um dos conselheiros teve a ideia: gatos!
O rei então mandou que trouxessem gatos para acabar com os ratos.
Em pouco tempo, os gatos chegaram - dezenas deles - e logo se puseram a perseguir os ratos. O rei ficou feliz e até bateu palmas. Logo o palácio ficou livre dos terríveis roedores.
Mas, depois de acabados os ratos, o que se iria fazer com os gatos? 
O palácio estava cheio deles. Havia gato em todos os aposentos, dentro de tudo quanto era cesto, armário, gaveta e guarda-roupa. Debaixo da cama, em cima da geladeira, pendurado nas cortinas. O rei já estava enlouquecendo com tanto miado, isso para não falar do fedido cocô que eles faziam em tudo quanto era vaso de planta.
Aborrecido, o rei gritou pelos conselheiros.
Eles vieram rapidinho ver o que estava chateando sua majestade.
- Conselheiros, precisamos fazer algo para acabar com esses gatos, senão eles acabam com os meus nervos!
Pensa que pensa, um dos conselheiros teve a ideia: cachorros!
O rei então mandou que trouxessem cachorros para expulsar os gatos.

Em pouco tempo, os cachorros chegaram - dezenas deles - e logo se puseram a perseguir os gatos. O rei ficou feliz e até bateu palmas. Logo o palácio ficou livre dos terríveis felinos.
Mas, depois de acabados os gatos, o que se iria fazer com os cachorros? 
O palácio estava cheio deles. Havia cachorro em todos os aposentos, debaixo da cama, da mesa, das cadeiras, até do trono. O rei já estava enlouquecendo com tanto latido, isso para não falar do monte de cocô e xixi que eles faziam em tudo quanto era canto, pé de cadeira, de mesa e até do relógio de pé.
Irritado, o rei gritou pelos conselheiros.
Eles vieram rapidinho ver o que estava incomodando sua majestade.
- Conselheiros, precisamos fazer algo para acabar com esses cachorros, senão eles acabam com o palácio!

Pensa que pensa, um dos conselheiros teve a ideia: leões!

O rei então mandou que trouxessem leões para expulsar os cachorros.
Em pouco tempo, os leões chegaram - vários deles - e logo se puseram a perseguir os cachorros. O rei ficou feliz e até bateu palmas. Logo o palácio ficou livre dos bagunceiros animais.
Mas, depois de acabados os cães, o que se iria fazer com os leões? 
O palácio estava cheio deles. Havia leões em todos os lugares, obrigando o rei, a rainha, as princesas, as damas e os nobres de sua corte a se trancarem em seus quartos. Ai aconteceu algo muito chato, que já deve ter acontecido com você. O rei ficou com vontade de fazer xixi. Mas muita vontade mesmo. O problema é que o banheiro ficava do outro lado do corredor. Como é que o rei ia sair do quarto com tanto leão do lado de fora?
Irritado e muito apertado, o rei gritou pelos conselheiros, que estavam trancados do lado de fora do palácio, todos com medo dos leões.
- Conselheiros, precisamos fazer algo para acabar com esses leões, senão eles acabam conosco!

Pensa que pensa, um dos conselheiros teve a ideia: elefantes!

O rei então mandou que trouxessem elefantes para expulsar os leões.
Em pouco tempo, os elefantes chegaram e logo se puseram a perseguir os leões. O rei ficou feliz e até bateu palmas. Logo o palácio ficou livre dos terríveis felinos.
Mas, depois de acabados os leões, o que se iria fazer com os elefantes? 
O palácio estava cheio deles. Tinha elefante até dentro da banheira do rei! Como são bichos muito grandes, logo não havia espaço para mais ninguém. O rei, a rainha, as princesas, as damas, os nobres de sua corte e seus conselheiros tiveram que ficar fora do palácio.
Não seria tão mal, porque os jardins reais eram muito belos. O problema foi que começou a chover. Logo, as penteadas perucas do rei, dos nobres e dos conselheiros e os lindos penteados de cachinhos da rainha, das princesas e das damas começaram a se desmilinguir, ficando todos com péssima figura.
Irritado e todo molhado, o rei gritou pelos conselheiros.
Eles nem precisar vir rapidinho porque já estavam lá, igualmente encharcados.
- Conselheiros, precisamos fazer algo para acabar com esses elefantes, senão teremos que nos mudar para outro palácio! 


Pensa que pensa, em meio a um espirro e outro, um dos conselheiros teve a ideia: ratos!

Epa, nós já não passamos por isso há alguns parágrafos? Mas se pensarmos com atenção, o único animal capaz de assustar o elefante é o rato. 
O rei teve que concordar, só que dessa vez ele foi esperto. Quando os ratos chegaram no palácio, antes de deixá-los entrar, o rei fez um acordo com eles: poderiam comer apenas uma quantidade que ele iria deixar para eles no salão. Celebraram o acordo com um aperto de mão e pata, no fio do bigode, como se dizia antigamente.
E foi assim que os ratinhos livraram o palácio - o rei, a rainha, as princesas, as damas, os nobres e os conselheiros - dos enormes paquidermes. E pelo sim, pelo não, o rei mandou construir enormes câmaras refrigeradas para guardar os seus preciosos queijos...
Não sei é verdade ou mentira mas esse conto se acabou!"

Esta estória - que aqui está em versão livremente adaptada por mim - me foi contada hoje na Biblioteca Central de Cerdanyola, na grande Barcelona, em catalão pelo grande narrador espanhol Blai Senabre. O tema de sua sessão era "Histórias de Palácio".
Mais tarde, ele me disse que era uma versão que ele tinha feito do conto árabe "O sultão e os ratinhos", publicado em catalão por Joan de Boher. 😊

Ouça a estória "O galo rouco e o rato esperto", da Cigana Contadora de Estórias!

Apresentações de contadores de estórias

Palavra Cantada - O rato
Clara Haddad - O coelho e o baobá

Cia Ópera na Mala - A sopa de pedras do Pedro

Cia Ópera na Mala - Pedro Malazartes e o pássaro raro

Eventos & Cursos

A atualizar