segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Conto: "O Príncipe Canário", de Ítalo Calvino


Era uma vez um rei que tinha uma filha. A mãe da menina morrera e a madrasta sentia muito ciúme da enteada; sempre falava mal dela para o rei. A moça vivia a se desculpar e a se desesperar; porém, a madrasta tanto falou e tanto fez que o rei, embora afeiçoado à filha, acabou dando razão à rainha e decidiu expulsá-la de casa. Contudo, disse que ela deveria ficar em um lugar no qual se instalasse bem, pois não admitiria que fosse maltratada.
— Quanto a isso — disse a madrasta —, fique tranquilo, não pense mais no caso.
E mandou encerrar a moça num castelo no meio do bosque.
Destacou um grupo de damas da corte e as mandou para lá, a fim de fazer companhia a ela, com a recomendação de que não a deixassem sair, e nem mesmo se aproximar da janela. Naturalmente, lhes pagava salários da casa real.
A moça recebeu um aposento bem montado, podendo beber e comer tudo que quisesse: só não podia sair. Todavia, as damas, muito bem pagas e com tanto tempo livre, nem se preocupavam com ela.
De vez em quando, o rei perguntava à mulher:
— E nossa filha, como vai? O que fez de bom?
A rainha, para mostrar que se interessava pela jovem, foi visitá-la. No castelo, assim que desceu da carruagem, foi recebida pelas damas, dizendo-lhe que ficasse tranquila, que a moça estava muito bem e era muito feliz. A rainha subiu um momento até o quarto da moça.
— E então, está realmente bem? Não lhe falta nada, não é? Está com uma bela cor, vejo que a aparência é boa. Mantenha-se alegre, hein? Até a próxima. — E foi embora.
Chegando ao castelo, disse ao rei que jamais vira sua filha tão contente.
Mas na verdade, sempre sozinha naquele aposento, pois as damas de companhia jamais lhe davam atenção, a princesa passava os dias tristemente debruçada na janela.
Debruçava-se com os braços apoiados no balcão e teria feito um calo nos cotovelos, se não tivesse lembrado de colocar uma almofada embaixo deles.
A janela dava para o bosque e a princesa, durante o dia inteiro, só via os cimos das árvores, as nuvens e a trilha dos caçadores.
Um dia, passou por ali o filho de um rei, que perseguia um javali. Ele sabia que aquele castelo havia muito tempo estava desabitado, e se admirou ao ver sinais de vida: panos estendidos entre as ameias, fumaça nas chaminés, vidraças abertas.
Observava tudo, quando viu, em uma janela lá do alto, uma bela moça debruçada, e sorriu para ela. A moça também viu o príncipe, vestido de amarelo e com polainas de caçador e
espingarda, que olhava para cima e sorria para ela; então, ela também sorriu para ele.
Ficaram assim uma hora, olhando-se e rindo, e também fazendo gestos e reverências, pois a distância que os separava não permitia outras comunicações.
No dia seguinte, aquele filho de rei vestido de amarelo, com a desculpa de ir caçar, estava lá de novo, e ficaram se olhando por duas horas. Dessa vez, além dos sorrisos, gestos e reverências,
puseram também uma das mãos no coração e acenaram lenços durante um bom tempo.
No terceiro dia, o príncipe ficou três horas e eles chegaram até a mandar um beijo, um para o outro, na ponta dos dedos.
No quarto dia, ele estava lá como sempre quando, de trás de uma árvore, apareceu uma bruxa que começou a zombar:
— Uah! Uah! Uah!
— Quem é você? De que está rindo? — Disse energicamente o príncipe.
— Onde é que já se viu dois namorados tão estúpidos a ponto de ficar tão distantes!
— Se soubesse como fazer para alcançá-la, avozinha… — disse o príncipe.
— Acho os dois simpáticos — disse a bruxa — e vou ajudá-los.
E, indo bater à porta do castelo, deu às damas de companhia um velho livraço ressequido e besuntado, dizendo que era um presente para a princesa, para que se distraísse lendo.
As damas logo o levaram para a moça, que imediatamente o abriu e leu: “Este é um livro mágico. Se virar as páginas no sentido certo, o homem se transforma em pássaro, e se virar as páginas ao contrário, o pássaro se transforma de novo em homem”.
A moça correu até a janela, pousou o livro no balcão e começou a virar as páginas às pressas, enquanto observava o jovem vestido de amarelo, em pé no meio da trilha.
Ela viu quando o jovem vestido de amarelo mexia os braços, agitava as asas e se transformava em um canário. O canário alçava vôo, eis que já era dono das alturas, acima das árvores, e eis que se dirigia a ela e pousava na almofada do balcão.
A princesa não resistiu à tentação de pegar aquele belo canário na palma da mão e beijá-lo; depois lembrou que ele era um jovem e se envergonhou; a seguir, lembrou disso de novo e
já não se envergonhou. Mas não via a hora de transformá-lo em um jovem como antes.
Retomou o livro, folheou-o ao contrário, e eis que o canário arrepiava as penas amarelas, agitava as asas, mexia os braços e era outra vez o rapaz vestido de amarelo, com os trajes de caçador, que se ajoelhava aos pés dela e lhe dizia:
— Eu te amo!
Depois que declararam todo seu amor, já era noite.  Lentamente, a princesa começou a virar as páginas do livro. O jovem, olhando-a nos olhos, se transformou outra vez em canário, pousou no balcão e depois nas telhas do beiral, entregou-se ao vento e desceu voando em grandes círculos, indo parar num ramo de árvore baixo.
Então, ela virou as páginas ao contrário, o canário voltou a ser príncipe, o príncipe pulou para o chão, chamou os cães com um assobio, mandou um beijo em direção à janela e se afastou pela trilha.
E, assim, todos os dias o livro era folheado para fazer o príncipe voar até a janela no alto da torre, folheado de novo para devolver-lhe forma humana, depois folheado outra vez para fazê-lo voar e folheado de novo para que pudesse voltar para casa. Os dois jovens nunca haviam sido tão felizes.
Um dia, a rainha foi visitar a enteada. Passeou pelo aposento, dizendo sempre:
— Você está bem, não? Acho que está um pouco magra, mas não é nada sério, não é verdade? Você nunca esteve tão bem, não?
Entretanto, para certificar-se de que tudo estava sob controle, abriu a janela, olhou para fora e, na trilha lá embaixo, viu o príncipe vestido de amarelo que se aproximava com seus cães. “Se essa dengosa acha que pode bancar a sedutora na janela, vou lhe dar uma lição”, pensou.
Pediu para a jovem ir preparar um copo de água com açúcar. Assim que se viu sozinha, arrancou cinco ou seis alfinetes do penteado e os espetou na almofada, de modo que ficassem
com as pontas para cima, mas sem serem notados. “Ela vai aprender a ficar debruçada no balcão!”
A moça voltou com a água com açúcar, e ela disse:
— Hum, passou a sede, beba você, queridinha! Tenho que voltar para perto de seu pai. Não está precisando de nada, não é? Então, adeus. — E foi embora.
Logo que a carruagem da rainha se afastou, a moça virou rapidamente as páginas do livro, o príncipe se transformou em canário, voou até a janela e se lançou como uma flecha na almofada.
Imediatamente se ouviu um agudo trinado de dor. As penas amarelas se tingiam de sangue, pois o canário enfiara os alfinetes no peito. Ergueu-se com um desesperado bater de asas, confiou-se ao vento, mergulhou num esvoaçar incerto e pousou no chão com as asas abertas.
Assustada, sem saber exatamente o que acontecera, a princesa virou depressa as folhas ao contrário, esperando que, se lhe devolvesse a forma humana, os ferimentos desaparecessem.
Porém, ai, ai, ai, o príncipe ressurgiu, jorrando sangue por profundas feridas que lhe dilaceravam no peito a roupa amarela. Jazia de bruços, cercado por seus cães. O ulular dos cães atraiu os caçadores, que o socorreram e o carregaram numa liteira de galhos, sem que pudesse ao menos alçar os olhos para a janela de sua amada, ainda aterrorizada de dor e espanto.
Conduzido ao seu palácio, o príncipe não dava sinais de recuperação e os médicos não eram capazes de confortá-lo. As feridas não cicatrizavam e continuavam a doer.
O rei, seu pai, espalhou cartazes por todos os cantos, prometendo tesouros a quem soubesse como curar o jovem; mas ninguém se apresentava.
Entretanto, a princesa se consumia por não poder chegar perto do amado. Começou a cortar os lençóis em tiras finas e a amarrá-las de modo a fazer uma corda comprida.
Com essa corda, certa noite, escapou da altíssima torre. Saiu andando pela trilha dos caçadores. Mas, entre a escuridão de breu e os uivos dos lobos, achou que era melhor esperar o amanhecer e, tendo encontrado um velho carvalho com o tronco oco, entrou e se acomodou lá dentro, adormecendo logo, cansada como estava.
Quando despertou ainda era noite alta: pareceu-lhe ter ouvido um assobio. Apurou os ouvidos e escutou outro assobio, depois um terceiro e um quarto. Logo distinguiu quatro chamas de vela que se aproximavam. Eram quatro bruxas, que vinham dos quatro cantos do mundo, e haviam marcado encontro embaixo daquela árvore.
Sem ser vista, a princesa espiava por uma fenda do tronco, vendo as quatro velhas com as velas nas mãos, que se faziam grandes festas e zombavam:
— Uah! Uah! Uah!
Acenderam uma fogueira junto à árvore e se sentaram para se aquecer e assar alguns morceguinhos para o jantar. Depois de comer bastante, começaram a contar umas às outras
o que tinham visto de interessante pelo mundo.
— Vi o sultão dos turcos que comprou vinte mulheres novas.
— Vi o imperador dos chineses que deixou crescer o rabo-de-cavalo até alcançar três metros.
— Vi o rei dos canibais que comeu o camareiro por engano.
— Vi o rei daqui de perto que tem o filho doente e ninguém sabe a cura, porque só eu sei.
— E qual é? — perguntaram as outras bruxas.
— No aposento dele há um taco solto. Basta erguer o taco e se encontra uma ampola; na ampola há um unguento que fará desaparecer todas as feridas dele.
De dentro da árvore, a princesa estava para dar um grito de alegria: teve de morder um dedo para ficar quieta. Quando já tinham dito tudo que tinham para dizer, as bruxas se despediram cada uma seguiu seu caminho. A princesa pulou para fora da árvore e, ao amanhecer,
se pôs a andar em direção à cidade. Na primeira loja de coisas usadas que encontrou, comprou uma velha roupa de médico e uns óculos.
Assim, disfarçada, foi bater no palácio real. Vendo aquele doutorzinho mal-ajambrado, os serviçais não queriam deixá-lo entrar, mas o rei disse:
— De qualquer jeito não há de fazer mal a meu pobre filho, que pior do que está não pode ficar. Deixem este também tentar.
O falso médico pediu que o deixassem sozinho com o doente, o que lhe foi concedido.
Quando chegou à cabeceira do amado, que gemia inconsciente em sua cama, a princesa queria explodir em lágrimas e cobri-lo de beijos, mas se conteve, pois devia executar rapidamente as prescrições da bruxa.
Pôs-se a andar de um lado para outro, até encontrar um taco solto: levantou-o e encontrou uma pequena ampola cheia de unguento.
Com esse unguento, pôs-se a esfregar as feridas do príncipe; bastava passar a mão cheia de unguento em cima da ferida para que ela desaparecesse. Toda contente, chamou o rei, e o rei viu o filho sem feridas, com o rosto corado, que dormia tranquilamente.
— Pegue o que quiser, doutor — disse o rei. — Todas as riquezas do tesouro do Estado são para o senhor.
— Não quero dinheiro — disse o médico. – Dê-me apenas o escudo do príncipe com o brasão da família, a bandeira do príncipe e sua jaqueta amarela, aquela perfurada e cheia de sangue.
E tendo recebido os três objetos, foi embora.
Após três dias, o filho do rei saiu de novo para caçar. Passou perto do castelo, em meio ao bosque, mas nem levantou os olhos para a janela da princesa. Mas ela pegou o livro, folheou-o, e o príncipe, mesmo contrariado, foi obrigado a se transformar em canário.
Voou até o aposento e a princesa o fez se transformar de novo em homem.
— Deixe-me ir embora — disse ele —, não lhe basta ter me ferido com seus alfinetes e ter me causado tanto sofrimento?
De fato, o príncipe perdera todo o amor pela moça, pensando que fosse ela a causadora de sua desgraça. A moça estava a ponto de desmaiar.
— Mas eu o salvei! Fui eu quem o curou!
— Não é verdade — disse o príncipe. — Fui salvo por um médico forasteiro, que não pediu outra recompensa além do meu brasão, da minha bandeira e da minha jaqueta ensanguentada!
— Eis o seu brasão, eis a sua bandeira e eis a sua jaqueta! Era eu aquele médico! Os alfinetes foram uma crueldade da minha madrasta!
O príncipe, atordoado, olhou-a nos olhos por um momento. Jamais lhe parecera tão linda. Caiu a seus pés, pedindo-lhe perdão e declarando toda sua gratidão e seu amor.
Na mesma noite, disse ao pai que queria casar com a moça do castelo do bosque.
— Você só pode desposar a filha de um rei ou de um imperador — disse o pai.
— Desposo a mulher que me salvou a vida.
E prepararam as núpcias, convidando todos os reis e as rainhas da região. Veio também o rei, pai da princesa, sem saber de nada. Quando viu se adiantar a noiva, exclamou:
— Minha filha!
— Como? — Disse o rei dono da casa. — A noiva de meu filho é sua filha? E por que não nos disse?
— Porque — disse a noiva — não me considero mais filha de um homem que me deixou ser aprisionada por minha madrasta. — E apontou o indicador para a rainha.
O pai, ao ouvir todas as desgraças da filha, foi tomado de pena por ela e de desdém pela sua pérfida mulher. Nem esperou voltar para casa para mandar prendê-la.
E, assim, o casamento foi celebrado com satisfação e alegria por todos, exceto por aquela desgraçada.

Ilustração: Natalia Pierandrei
Fonte: Fábulas Italianas, de Ítalo Calvini

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