
- Isto... é a árvore de Natal de Cristo - respondem-lhe. - Todos os anos, neste dia, há, na casa de Cristo, uma árvore de Natal, para os meninos que não tiveram sua árvore na terra...
"A ilusão é tão útil como a certeza: e na formação de todo o espírito, para que ele seja completo, devem entrar tanto os contos de fadas como os problemas de Euclides" - Eça de Queiroz
"Há muito tempo atrás havia três carneirinhos que gostavam de subir a colina para encher as barriguinhas, e o nome de todos os três era "Gruff".
No caminho para a colina, havia uma ponte sobre um riacho que eles tinham que atravessar. E debaixo da ponte morava um troll horroroso, com olhos grandes como pratos e um nariz tão longo quanto um graveto.
Então, primeiro de todos, veio o carneiro mais novinho para cruzar a ponte.
- Trip, trap, trip, trap! - fez a ponte.
- Quem está trotando na minha ponte? - berrou o troll.
- Oh, sou eu, o menor dos carneirinhos Gruff, e eu estou subindo a colina para encher a minha barriguinha. - disse o carneiro, com uma voz bem baixinha.
- Ah, então agora eu vou encher a minha barriguinha com você! - disse o troll.
- Oh, não, por favor, não me devore! Eu sou muito pequenininho! - disse o carneiro. - Espere até que o segundo de nós venha. Ele é muito maior.
- Ah, está certo. - disse o troll - Pode ir embora!
Um pouco depois, chegou o segundo carneiro para cruzar a ponte.
- Trip, trap, trip, trap, trip, trap! - fez a ponte.
- Quem está trotando na minha ponte? - berrou o troll.
- Oh, sou eu, o segundo dos carneirinhos Gruff, e eu estou subindo a colina para encher a minha barriguinha. - disse o carneiro, com uma voz que não era tão baixinha como a do irmão caçula.
- Ah, então agora eu vou encher a minha barriguinha com você! - disse o troll.
- Oh, não, por favor, não me devore! - disse o carneiro. - Espere até que o mais velho de nós venha. Ele é muito maior.
- Ah, está certo. - disse o troll - Pode ir embora!
O maior carneiro de todos estava chegando bem naquela hora.
- Trip, trap, trip, trap, trip, trap! - fez a ponte, e o o carneiro era tão pesado que a ponte estalou debaixo dele.
- Quem está trotando na minha ponte? - berrou o troll.
- Sou eu, o grande carneiro Gruff, e eu estou subindo a colina para encher a minha barriga! - respondeu o maior de todos os carneirinhos, em uma voz que nada tinha de baixinha.
- Ah, então agora eu vou encher a minha barriguinha com você! - disse o troll.
- Pode vir! - respondeu o carneiro - Eu tenho dois chifres enormes e vou furar seus olhos, vou segurar e levantar você e jogar bem longe!
Aquilo foi o que o carneiro, que era o maior de todos, disse. E bem dito, bem feito. Ele correu até o troll, o agarrou com seus chifres e o jogou bem longe, lá embaixo no riacho. E depois disso, muito calmamente, atravessou a ponte e subiu para a colina, onde se juntou aos seus dois irmãos e encheu a barriga com a grama bem verdinha.
E o troll? Ah, ninguém nunca mais ouviu falar dele..."
***
Ilustração da capa do livro "The Three Billy-Goats Gruff", de Val Biro - Editora Star Bright Books, 1998 - ISBN 1887734465, 9781887734462 - 32 páginas
bruna@jc.com.br
Era uma vez um menino que, desde cedo, descobriu nas letras sua brincadeira favorita. A princípio, o abecedário não fazia mais que aparar suas quedas. Era um tapete macio que decorava o quarto e aguçava a curiosidade do pequeno brincalhão. Depois, vieram os livrinhos de plástico para o banho e os de papel para todas as horas. Não demorou muito e os gibis viraram a companhia mais requisitada do menino que crescia cercado de letrinhas. Com uma forcinha da mãe e da avó, ele alfabetizou-se cedo. Aos 4 anos, já lia de tudo. E nunca mais parou. Seis anos depois, o menino já tem uma coleção enorme de livros na prateleira. E outra maior ainda no juízo.
Essa história é real e seu protagonista é Vinícius, filho da estilista Carol Azevedo, que lê, em média, sete livros por mês, das aventuras do bruxinho Harry Potter aos clássicos policiais estrelados por Sherlock Holmes. “Ele gosta de ser CDF. Dorme de óculos e já acorda lendo”, comemora a mãe, certa de que livros são escadas que Vinícius já começou a subir na vida. Aliás, certíssima. Segundo a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada entre novembro e dezembro de 2007 e divulgada no ano passado pelo Ibope Inteligência, um em cada três leitores adquire o hábito com os pais. Com 5 anos de idade em diante, 49% dos 5.012 entrevistados admitiram ter sido sua mãe a maior incentivadora da leitura por prazer.
Um papel que a pesquisadora Patrícia Bandeira de Melo, mãe de Pedro Antero, 8, assumiu sem economizar esforços. “Para mim, era essencial que ele gostasse de ler”, conta Patrícia, que apelou para o arsenal completo dedicado a iniciantes: dos tapetes com letras de plástico aos gibis.
“Também fiz questão de contar muitas histórias para ele dormir, das mais bobinhas a clássicos como O mágico de Oz.” O resultado não tardou a aparecer. Corujices maternas à parte, Pedro Antero é a criatividade ambulante. Vive encarnando os mais diversos personagens nas festinhas familiares e até já montou em casa uma verdadeira editora de gibis, na qual assume, sem reclamar das extenuantes jornadas de trabalho, os postos de editor, desenhista e roteirista. “De livro em livro, brincadeira em brincadeira, tenho certeza de que ele será um profissional diferenciado, seja lá qual for a carreira que escolher”, prevê a mãe.
Para Tomás Manzi, 10, a vida sem livros também seria inviável. Na verdade, pouquíssimo prazerosa. Leitor voraz, ele é do tipo que esquece até de tomar banho e comer quanto está no meio de uma boa história. “Às vezes, inventa de sair de casa com o livro debaixo do braço e, se eu não cuidar, ele atravessa a rua sem tirar o olho do texto”, conta a mãe Cristiane Gueiros, advogada e, não por acaso, fã incondicional dos mais diversos tipos de literatura. “Aqui em casa, quem leu primeiro a coleção inteira de Harry Potter fui eu”, conta Cristiane, que virou atração na escola dos filhos. “Até hoje as crianças ficam me perguntando coisas sobre os livros, tirando dúvidas. Elas acham o máximo um adulto gostar de Harry Potter.” A coleção, diga-se de passagem, já deixou de ser de Cristiane faz tempo. Tanto Tomás, quanto o irmão, Samuel, 7, já se renderam aos encantos do pequeno, aliás, ex-pequeno bruxo.
Mais que algumas histórias, o que Cristiane quer compartilhar com os filhos é um hábito. “Ficaria complicado dizer a Tomás e Samuel que eles precisam ler, se ninguém em casa tivesse o hábito.” O melhor exemplo, garante, é a prática.
E isso vale tanto para a leitura offline quanto para a online. “Eles navegam à vontade, mas estou sempre orientando. Digo que internet é como um martelo, que pode ser usado para bater um prego e pendurar um quadro na parede ou para meter na cabeça do colega e fazer um estrago enorme.” O valor de toda ferramenta, diz a mãe zelosa, depende do uso que a gente faz dela.
Um mérito inquestionável da internet, segundo a coordenadora pedagógica da escola Apoio, é fazer circular uma quantidade enorme de informações no mundo inteiro. “Nunca se teve tanto conhecimento à disposição como hoje”, diz. Melhor para as crianças, que têm a faca e o queijo na mão desde muito cedo, aliás, lazer e aprendizado. “A leitura desenvolve senso crítico, forma cidadãos mais pensantes, mais atuantes, além de ser um acesso para o que há de mais belo na humanidade”, diz Rejane, que, com a equipe de professores da escola, se desdobra em projetos para estimular a leitura.
Para os mais novos, são realizadas as rodas de leitura, em que são lidos e discutidos clássicos de Manuel Bandeira, Olavo Bilac e até Ítalo Calvino. “Engana-se quem pensa que criança digere só coisa boba.” Para os mais velhos, as professoras mandam livros para serem lidos e depois traduzidos em desenhos ou textos em casa. “Sem falar nas aulas de literatura”. Tudo culmina numa publicação com textos e ilustrações dos próprios alunos, editado ao final de cada ano.
Na escola Exponente, a leitura também é tão valorizada, que todos os estudantes têm aula na biblioteca a cada 15 dias. Uma das atividades prediletas de Luca Leitão, 5, e Frederico dos Santos, 4, que, apesar da pouca idade, já têm a foto estampada nos corredores do colégio como os leitores mais assíduos do mês. Dedicadíssimos aos livros, eles vivem na biblioteca e consideram os livros uma brincadeira das mais divertidas. De livro em livro, Luca já aprendeu a escrever o nome inteiro, antes mesmo de chegar à alfabetização. Seu predileto? “Todos de dinossauro”, diz, sem nem tirar os olhos de uma dessas publicações jurássicas. Com a ajuda dos livros, diz uma das coordenadora da instituição, Liane Niceas, a aquisição de conhecimento torna-se um processo mais prazeroso, que não fica restrito aos muros da escola.
É por isso que as professoras Patrícia Pompílio, Estela Santos e os filhos das duas não perdem uma edição que seja da Bienal do Livro de Pernambuco. A feira, que acaba amanhã, no Centro de Convenções, está repleta de atrações para a criançada em todos os estandes. E, principalmente, no primeiro andar, onde fica a Cidade do Livro, com contação de histórias e oficina de produção de publicações.
2 De Valéria Belém, Feita de pano mostra que a vida é a costura de pequenos momentos. Da Companhia Editora Nacional. Preço sugerido: R$ 23
3 Conta a história de um lugar onde tudo é exagerado, o livro é ilustrado por Marcos Garutti. Editora Lazuli. Preço sugerido: R$ 16
4 Escritora Rosa Amanda Strausz, em Nico, fala de vaidade na infância. Editora Larousse. Preço sugerido: R$ 21,50
5 Primeira obra de Ziraldo, o livro foi relançado com capa nova. Editora Melhoramentos. R$ 59
6 Em pop up, a publicação conta – e monta – a história da arca de Noé. Da Sociedade Bíblica do Brasil. Preço sugerido: R$ 29,80
Dez anos de Kest
Interessante seria, meu bom amigo, iniciar este conto à maneira dos escritores clássicos israelitas, citando cinco ou seis pensamentos admiráveis, colhidos nas páginas famosas do Talmude. Como recordar-me, porém, dos trechos mais belos da Sabedoria de Isreel, quando é tão fraca, incerta e claudicante a minha memória? Vem-me apenas à lembrança, neste momento, um velho provérbio muito citado pelos judeus russos: “Quando o homem é feliz, um dia lhe vale um ano”.
A verdade contida nesse aforismo é indiscutível. E a história, que a seguir vou narrar, poderá servir para ilustrar a minha asserção.
Vivia em Viena, há mais de meio século, um jovem chamado David Kirsch, filho de um milômed, homem prudente e sensato. Kirsch adornava o seu espírito com uma qualidade bastante apreciável: não ousava tomar resolução alguma de certa relevância sem se sentir esclarecido e orientado pelos conselhos dos mais velhos. Seu judicioso pai lhe dera a seguinte recomendação:
— Cabe-me dizer-te, meu filho, que deverás evitar qualquer casamento quando do consórcio resultar aproximação, por parentesco, com um judeu vermelho.
Com a prudência que a longa experiência da vida sói ensinar aos homens, o pai acrescentara:
— Se algum dia, porém, por triste fatalidade, caíres nas garras de um judeu vermelho, procura sem demora o auxílio de outro judeu vermelho.
Quis o jovem David conhecer, mais por curiosidade do que por outro motivo, a razão de ser daquele estranho conselho, mas o velho milômed recusara-se terminantemente a dar qualquer explicação, alegando que tinha, para assim proceder, motivos que de consciência não poderia revelar.
O jovem David Kirsch foi procurado por um agenciador de casamentos. Trocadas as saudações habituais, o agenciador assim falou, assumindo como sempre um ar de máxima reserva e discrição:
— Como sei que pretendes resolver do melhor modo possível o problema de teu futuro, com a escolha de uma companheira digna, quero informar-te que obtive para o teu caso uma solução admirável. A noiva que tenho em vista é formosa, de família honesta e, além do mais, muito culta e prendada.
— E o dote? — indagou David, grandemente interessado, procurando tocar com a máxima finura naquele assunto tão delicado.
— Quanto ao dote — aclarou logo o agenciador, com um sorriso que traduzia o orgulho de bom profissional — está combinado que será de mil coroas, e terás ainda dez anos de kest.
— Dez anos de kest! — repetiu David, numa sinceridade de veemente surpresa. — Mas isto é espantoso, inacreditável!
Sou forçado a interromper a presente narrativa para dar ao leitor não-judeu, isto é, ao meu bom amigo gohin, um esclarecimento que me parece indispensável.
O kest é costume tradicional entre os judeus. O pai da noiva, além do dote (que é de uso também entre os cristãos), concede ao genro, a título de auxílio para iniciar a vida, a permissão de viver durante algum tempo em sua casa, sem fazer a menor despesa, quer com a alimentação, quer mesmo com o vestuário. Esse período, durante o qual o pai da jovem toma a seu cargo a subsistência completa dos recém-casados, é denominado kest, e em geral varia de um a três anos. Para um jovem egoísta, sem ânimo para a vida, pouco inclinado ao trabalho, a oferta de um kest prolongado constitui uma isca irresistível. Era esse, precisamente, o caso de David Kirsch, indolente como um falso mendigo, amigo da boa-vida e do feriado permanente.
Dez anos de kest! Um judeu sensato não poderia hesitar. A cerimônia do noivado, com a clássica apresentação das famílias, foi marcada para alguns dias depois.
Quando David Kirsch foi levado à presença da sua noiva, ficou maravilhado. O agenciador não o havia iludido, pintando com as cores vivas do exagero os encantos da noiva prometida. A menina era uma judia realmente graciosa, esbelta, cheia de vida, e os dez anos de kest emprestavam-lhe ao olhar, ao sorriso e aos lábios todos os ímãs inconcebíveis da beleza. Rebla, a filha do rei de Gorner, não parecera mais sedutora aos olhos do grande Salomão. Dela diria certamente o poeta: “De longe parece uma estrela; de perto, uma flor”.
Dolorosa foi, porém, a surpresa do noivo judeu ao defrontar, pela primeira vez, com o seu futuro sogro. Pela cor fulva dos cabelos, pelas sardas que repintavam o carão avermelhado, era o velho um tipo perfeito e inconfundível de judeu vermelho.
Naquele momento, invadido por negrejante inquietação, recordou-se David do conselho que a prudência paterna lhe ditara: “Evitar qualquer aproximação, pelo casamento, com um judeu vermelho”. Mas que fazer, naquela dependura? A sua palavra estava dada. Ademais, acima de qualquer compromisso, esmagando dúvidas e receios, os dez anos de kest constituíam um argumento irrespondível, diante do qual desapareciam todos os motivos que militavam contra o consórcio que se lhe afigurava tão promissor.
Pouco tempo depois realizou-se o enlace nupcial, e o jovem passou a viver com sua adorada esposa o seu belo período de kest, em casa do rico judeu vermelho.
— Esse judeu vermelho — pensou David, altamente desconfiado com o caso — alguma peça desagradável prepara para mim. Custa-me acreditar que ele mantenha essa liberalíssima promessa dos dez anos de kest. Naturalmente terei, em sua casa, um tratamento tão vil e humilhante, que nem mesmo um cão seria capaz de aturar, e ao fim de dois ou três meses, é certo, serei forçado, pela situação, a procurar outro pouso e trabalho. Alguma perfídia o meu sogro já planejou contra mim!
Com grande espanto, entretanto, o jovem David verificou que o pai de sua esposa era de um feitio que desmentia por completo seus temores e desconfianças. O judeu vermelho mostrava-se delicado e afetuoso, e dispensava ao seu novo genro um tratamento principesco. Fazia multiplicar os pratos saborosos nas refeições, proporcionava-lhe passeios agradabilíssimos, dava-lhe roupas finas e enchia-o de presentes valiosos.
— Meu pai não tinha razão — meditava o jovem, refletindo sobre a vida regalada e invejável que desfrutava em casa de seu sogro. — Que outro marido poderá ser mais feliz do que eu? Minha esposa é encantadora; por longo prazo, sem o menor trabalho, preocupação ou contrariedade, terei nesta casa mesa sempre lauta, agasalho, carinho e consideração!
Ao cabo de alguns dias o velho judeu vermelho chamou o indolente marido de sua filha e interpelou-o, muito sério:
— Dize-me, ó David: és, na verdade, feliz na tua nova situação de homem casado e chefe de família?
— Muito feliz, meu sogro — confirmou o jovem, num retraimento de espanto. — Sinto-me aqui incomparavelmente feliz.
— Se assim é, o teu kest está terminado!
— Terminado o meu kest? — protestou atônito o marido parasita. — Mas se eu estou casado há pouco mais de uma semana! Como pode ser isto?
— Como pode ser? Nada mais simples. Vou provar claramente. Estás casado com minha filha há dez dias. Bem sabes que no livro dos provérbios encontramos exarada esta sentença: “Quando um homem é feliz, um dia vale um ano”. Logo, de acordo com esse tradicional provérbio, estás casado há dez anos! Amanhã, portanto, levarás de minha casa tua esposa e irás para a tua residência. Creio que deverás também procurar um emprego, um meio qualquer de vida, pois de mim já recebeste o necessário auxílio, o dote e o kest prometidos.
Diante da imposição do sogro, David sentiu-se presa de grande furor. Quis apresentar argumentos que militavam em seu favor, mas o astucioso judeu vermelho manteve-se intransigente, e não houve como levá-lo a reconsiderar a resolução que havia tomado, insistindo em afirmar que nada mais fazia senão atender à verdade contida no provérbio: “Quando o homem é feliz, um dia vale um ano”.
Não se conformava o rapaz com a idéia de ser obrigado a trabalhar para viver; e a situação a que fora atirado envenenou-lhe o espírito com todas as toxinas do rancor. Tinha sido indigno, a seu ver, o proceder do sogro. Prometera-lhe, sob palavra, dez anos de kest, e depois, por evidente má-fé, baseando-se num idiota brocardo judeu, reduzira o prazo a dez dias. Que tratante! Um grande velhaco! Quando o interesse estava em jogo, sabia transformar um simples provérbio em lei social!
— Meu pai tinha razão — murmurou David, recalcando os seus rancorosos impulsos. — Toda razão tinha meu pai. Pratiquei uma imprudência muito séria, fazendo-me surdo aos conselhos daquele que melhor do que eu deve conhecer a vida e os filhos de Israel.
Resolvido a não incidir uma vez mais no erro, o jovem recordou-se da segunda parte do conselho paterno, e foi, nesse mesmo dia, procurar um conhecido seu chamado Elias Bloch, também judeu vermelho, e pediu-lhe indicasse um meio que lhe permitisse sair da situação crítica em que se encontrava.
O inteligente Elias Bloch atendeu com amabilidade o jovem David, e depois de ouvir o minucioso relato da burla do kest, expediu uma risadinha seca e maldosa, e respondeu com um relâmpago de inspiração no olhar:
— Não vejo dificuldade alguma em resolver o teu caso. Irás amanhã à casa de teu sogro, e se seguires as minhas instruções, sairás vencedor nesse litígio.
No dia seguinte, David Kirsch, tendo nas mãos um exemplar da Torá — que é o livro da lei, entre os hebreus — foi ter à rica vivenda do seu astucioso sogro.
Depois de saudá-lo com certa reserva e cerimônia, como se as relações entre ambos estivessem profundamente abaladas, assim falou com teatral entonação:
— Por motivos muito graves sou forçado a vir agora à sua presença. Vou divorciar-me!
Divórcio! Esta palavra, para a família judaica, representa uma desgraça só comparável às maiores calamidades.
— Estás louco, rapaz! — protestou o velho, empalidecendo ligeiramente. — Bem sabes que o divórcio só pode ser obtido segundo a lei de Moisés. Que motivo poderá ser aduzido para justificativa dessa nódoa infamante com que pretendes golpear a minha família?
— Tenho a lei a meu favor. Como o senhor mesmo declarou e provou, vivi em sua companhia os dez anos de kest. Os doutores e rabis não ignoram que o Livro da Lei de Moisés diz com a maior clareza: “Quando a mulher não concebe ao fim de dez anos, o marido pode requerer o divórcio”. Ora, estou casado há dez anos e não tenho filhos; cabe-me, portanto, segundo a lei, o direito de repudiar minha esposa.
— Que brincadeira é essa, meu filho! — retorquiu o judeu vermelho, emergindo da sua estupefação e abraçando amavelmente o genro. — Afastemos de nós as idéias tristes, pois já não foi pequeno o susto com que abalaste meu coração de pai. Fizeste mal em tomar a sério o meu gracejo sobre o tal provérbio dos dias felizes. E se assim é, fica o dito pelo não-dito. Se eu prometi dez anos de kest, é certo que poderás viver todo esse tempo em minha casa.
E concluiu, com um gesto convencido e superior, passando lentamente a mão pelos cabelos avermelhados:
— Jamais deixei, menino, como bom judeu, de cumprir a palavra dada.
***
Fonte: Malba Tahan, Lendas do Povo de Deus – Ed. Conquista, Rio de Janeiro, 1964
Imagem: blog Pensando Alto
“O Contador de Histórias”
Ele era considerado um menor irrecuperável - até encontrar afeto.
O surpreendente percurso do mineiro Roberto Carlos Ramos poderia ser mais uma das muitas histórias que ele inventava desde criança para driblar a realidade, como transformar a chegada a uma instituição para menores em uma ida ao circo, a movimentação de um assalto de rua em animado jogo de futebol ou a robusta professora de educação física em um hipopótamo de couro azul remendado.
No entanto, a história real do garoto ‘irrecuperável’, analfabeto até os 14 anos e com mais de uma centena de fugas no currículo, é ainda mais tocante: o encontro com a pedagoga francesa Margherit Duvas acrescentou elementos essenciais e até então inexistentes em sua vida ou em seus relatos tão inventivos, como afeto, confiança, esperança.
O Contador de Histórias, com direção de Luiz Villaça (Por Trás do Pano, Cristina Quer Casar), traz para o cinema com emoção, lirismo e humor, a história deste encontro que começou com duas expressões que Roberto, apesar do farto vocabulário aprendido na instituição e nas ruas, jamais ouvira: “com licença’ e ‘por favor’. Palavras que começaram a mudar a vida de um menino e, que hoje, 30 anos depois, continuam a mudar a vidas de muitos outros meninos.
A atriz franco-portuguesa Maria de Medeiros (Pulp Fiction – Tempo de Violência, Henry & June, Capitães de Abril) interpreta Margherit Duvas. Roberto Carlos é interpretado por Marco Ribeiro (6 anos), Paulinho Mendes (13 anos) e Clayton Santos (20 anos), escolhidos entre mais de 500 candidatos selecionados em escolas e projetos sociais de Minas Gerais, sob coordenação de Lais Corrêa, atriz e preparadora de elenco. Malu Galli, Jú Colombo e Chico Diaz também integram o elenco.
Roberto Carlos Ramos hoje é educador
Com roteiro de Mauricio Arruda, José Roberto Torero, Mariana Veríssimo e Luiz Villaça, o filme tem fotografia de Lauro Escorel e música de André Abujamra e Márcio Nigro.
Uma produção de Francisco Ramalho Jr. e Denise Fraga.
Com Distribuição da Warner Bros. e sob os auspícios da Unesco, O Contador de Histórias tem estreia nacional no dia 7 de agosto.
5
LONGA-METRAGEM 35mm
Duração: 110 minutos
Ano Produção 2009
Produtora RAMALHO FILMES e NIA FILMES
Esta versão vem do livro El saber es más que la riqueza, de Silvia Dubovoy O semeador de tâmaras Em um oásis perdido no deserto, o velho El...