"Numa aldeia Mi'kmaw, à beira de um grande lago, vivia um viúvo com suas três filhas. A mais velha era vaidosa e impaciente; a segunda, preguiçosa e rabugenta; a terceira, humilde e de bom coração. Suas irmãs a maltratavam o tempo todo, obrigando-a a fazer o trabalho pesado e a cuidar do fogo. Às vezes, a mais velha a queimava com cinza quente, o que a deixou com tantas cicatrizes que passou a ser chamada Oochigeaskw, a menina do rosto marcado.
Na fronteira dessa aldeia viviam dois irmãos, um rapaz e uma moça. Eles não chamariam a atenção de ninguém se não fosse por um detalhe: o rapaz era invisível aos olhos de todos, a não ser os da irmã. E todos sabiam que, se um dia alguma jovem pudesse vê-lo, casaria com ele... o que todas, levadas pela curiosidade e pela fascinação, gostariam de fazer.
Uma a uma, as jovens da aldeia se submetiam à prova estabelecida pelo rapaz, indo ao encontro da irmã dele e passeando com ela à beira do lago. Em dado momento, a irmã do rapaz invisível parava e indagava se a amiga estava vendo seu irmão, e, caso a resposta fosse afirmativa, perguntava de que era feita a corda de seu arco e com o que ele puxava seu trenó.
Sem poder vê-lo, as jovens arriscavam respostas. “A corda é feita de couro cru”, diziam, ou ainda, “Ele puxa o trenó com um galho flexível de árvore”. A irmã percebia que as moças tentavam enganá-la, mas mesmo assim as convidava à sua tenda, onde servia ao irmão alimentos que, pouco a pouco, iam desaparecendo, sem que as convidadas pudessem ver quem comia. Por fim, as jovens desistiam de ver o que quer que fosse e voltavam para casa.
Certo dia, as irmãs de Oochigeaskw resolveram tentar a sorte, mas não quiseram levar a mais nova, a quem deixaram com serviço dobrado para fazer enquanto estivessem fora. No fundo, elas não acreditavam poder ver o rapaz invisível, mas tinham esperanças de que ele se deixaria seduzir por sua beleza. O rapaz e sua irmã, contudo, se portaram exatamente como das outras vezes, e as duas voltaram para casa sem nada ter conseguido.
No dia seguinte, o pai delas chegou com uma porção de conchinhas muito bonitas, que as filhas mais velhas pegaram para si. Enquanto isso, Oochigeaskw, que sempre andara descalça, pediu e obteve do pai um velho par de mocassins, e depois foi à floresta e arrancou cascas de bétula, com as quais fez um vestido. Ao retornar, pediu conchinhas às irmãs para adorná-lo. A mais velha não a atendeu, mas a segunda ficou com pena e lhe deu algumas conchinhas. Oochigeaskw enfeitou seu vestido com elas, conforme aprendera com seus ancestrais, calçou os mocassins do pai e saiu para também tentar a sorte com o ser invisível, embora as outras moças tentassem impedi-la, dizendo que era tão feia que nem seria recebida pela irmã do rapaz.
De fato, com a estranha roupa de casca de árvore, os velhos mocassins e o rosto coberto de cicatrizes, Oochigeaskw não era atraente. Mas a irmã do ser invisível, que enxergava além das aparências, a recebeu com um sorriso e a levou para caminhar à margem do lago.
- Você pode ver meu irmão chegar? – perguntou ela, de repente.
- Sim, e ele é muito belo – disse Oochigeaskw.
- De que é feita a corda do seu trenó?
- Do arco-íris.
- E a corda do seu arco?
- São as estrelas da Via Láctea – murmurou a moça.
- Eu sabia desde o início que você o veria! – exclamou a irmã, feliz. – Venha, vamos para casa esperá-lo.
Ao entrar na tenda, a irmã preparou um banho com raízes perfumadas para Oochigeaskw. Enquanto a banhava, suas cicatrizes iam desaparecendo e seu cabelo se tornando espesso e brilhante. A irmã a penteou e depois a vestiu com um lindo vestido de casamento, bordado em conchinhas dispostas em desenhos, como faziam os antepassados. Então, disse-lhe para sentar no lugar reservado àquela que seria a esposa de seu irmão.
Quando ele, belo e forte, entrou na tenda, viu a jovem que o esperava e perguntou:
- Já não nos vimos antes?
- Sim, hoje, no final da tarde – respondeu ela, os olhos brilhando como estrelas.
Esta versão veio do site Estante Mágica da Ana, da escritora Ana Lúcia Merege, adaptado por ela do livro “O violino cigano”, de Regina Machado (Cia. das Letras, 2004).
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