quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Ziraldo estreia programa de incentivo à leitura

Ziraldo e algumas de suas criações, por ele mesmo

O cartunista Ziraldo, criador da Turma do Pererê e do Menino Maluquinho, entre outras obras, estreou no último domingo (23), ao meio-dia, na TV Brasil, o programa "ABZ do Ziraldo". Fiquei encantada com o que assisti. A proposta é incentivar nas crianças e jovens a leitura, através da apresentação de livros, autores e contadores de estórias.

Veja que beleza o pensamento do cartunista: “Meu sonho é tornar o Brasil um país de leitores. Ler é um prazer e não sacrifício. Espero, nessa altura da vida, e através deste projeto, ajudar a criança brasileira a não crescer analfabeta”.

Leia a matéria sobre o programa publicada no site da Empresa Brasileira de Comunicação:

TV Brasil lança ABZ do Ziraldo

EBC / TV Brasil - 18/08/2009

Dentro do projeto de renovar sua programação, a TV Brasil lançou nesta segunda (17), o ABZ do Ziraldo . Com a presença do cartunista e escritor Ziraldo, de escritores de literatura infantil, de contadores de história e de crianças, o lançamento se transformou em uma grande festa no Espaço Cultural da sede da emissora, no Rio de Janeiro. O ponto alto do evento foi a apresentação do Coral Maluquinho que, sob o comando do maestro Ronald Valle, cantou a música tema do programa, recebendo aplausos da plateia.
Desejando boa sorte a Ziraldo, a presidente da EBC – Empresa Brasil de Comunicação, jornalista Tereza Cruvinel, se referiu ao programa como o carro chefe de uma comitiva de novos programas da TV Brasil que, segundo ela, vai formar um comboio vitorioso.
“ Toda TV pública investe nas crianças e aqui não seria diferente. Queremos oferecer um programa de qualidade, principalmente para as crianças que não possuem TV paga”. Ao final, ela agradeceu a FBL Criação e Produção e ao Ziraldo, pela parceria com a TV Brasil.
Depois de mais uma apresentação musical das crianças que cantaram Tim Maia e João Bosco, foi a vez de Ziraldo falar:
“Esse programa não tem compromisso com o lucro, não queremos ganhar, queremos é levar algo diferente para as famílias. O ABZ do Ziraldo , assim como meus livros, não é feito somente para o público infantil. Meu trabalho é voltado para toda a família”.
“Meu sonho é tornar o Brasil um país de leitores. Ler é um prazer e não sacrifício. Espero, nessa altura da vida, e através deste projeto, ajudar a criança brasileira a não crescer analfabeta”, completou.
O ABZ do Ziraldo estreia neste domingo, 23, às 12h, na TV Brasil. Além do Coral Maluquinho o programa terá a presença de uma plateia formada por crianças da rede pública, escritores infantis e contadores de história que vão ajudar Ziraldo nesse novo trabalho voltado para a leitura.

sábado, 22 de agosto de 2009

Contação de estórias na Feira de Livros

A Cigana Contadora de Estórias - foto: Layanna Florêncio

Ontem fui contar estórias na Feira de Livros da Livraria Estudantil aqui em Caruaru. Foi uma aventura... hehehe... Eu tinha me preparado para me apresentar para crianças de 9 e 10 anos. Passei as últimas duas semanas selecionando o repertório e acabei me decidindo por um programa de quatro contos: "O Macaco e a Banana", de Câmara Cascudo; "Pedro Malasartes e a Sopa de Pedra", de Ana Maria Machado; "Quem tudo quer, tudo perde", de Câmara Cascudo; e "O Problema dos 35 Camelos", de Malba Tahan. Ensaiei o repertório, estava tudo nos trinques, certa de que ia ser muito legal, as crianças iriam se divertir muito. Qual não foi a minha surpresa ao entrar na livraria e ver um grupo de crianças de 3 a 5 anos? Ih... caraca... pensei. Teria que fazer uma mudança no programa. Ainda bem que, antes da minha apresentação, haveria um grupo de danças. Deu tempo para eu passar os olhos pelos livros e rapidamente refazer a minha programação.

Crianças nessa faixa etária gostam muito de estórias com bichos, estorinhas simples, de magia, estórias engraçadas, com bichos trapalhões.

Comecei então com uma versão mais simples de "O Macaco e a Banana", um conto do tipo acumulativo, que vou depois publicar aqui. Eles se divertiram a valer, principalmente quando o macado ia pedir ajuda e a resposta era sempre um "Não!". No final, quando a Morte foi atrás do caçador, que foi atrás da onça, que foi atrás do cachorro e por aí em diante, eles riram muito.
Crianças do Colégio Contato ouvindo as estórias da cigana Kopinits - foto: Layanna Florêncio

Passei para "O Nariz do Elefantinho". Não sei quem é o autor, ouvi essa estória (postada aqui) da Ilana Kaplan, num dvd que comprei para a minha filha. Eles também gostaram muito!

A terceira foi uma estorinha que sempre faz muito sucesso com a criançada, que é "A Festa no Céu", da tradição popular. Depois, perguntei que estória eles gostariam de ouvir - estratégia que pode ser desastrosa se o contador não for habilidoso, pois as crianças podem pedir estórias que ele não conhece e aí?. As respostas me surpreenderam:

- Nemo! - gritou um pequeno.

- Ben 10! - disse um outro.

- Backyardigans!, pediu uma menininha.

Nemo? Ben 10? Backyardigans? Felizmente, tenho alma infantil o suficiente para saber do que eles estavam falando, mas fiquei surpreendida ao perceber que eram personagens de filmes ou de programas de tv. Traduzindo, aquelas crianças estavam mais antenadas com a tv do que familiarizadas com livros. Tudo bem que crianças de 3 a 5 anos ainda não leem, mas imagino que os pais ou professores na escolinha certamente as colocariam em contato com o mundo da leitura. Mas parece que não é bem assim. Foi uma constatação que me deixou um pouco triste.

Respondi que aquelas estórias eles já conheciam e viam sempre na televisão e, portanto, iria contar uma nova, sobre duas borboletas chamadas Romeu e Julieta, uma estória de Ruth Rocha.

A estorinha fala da bobagem que é fazer distinção de cor, de diferenças, e o melhor é sermos todos amigos, sem preconceitos. Todos gostaram muito, principalmente os professores.

Encerrei a apresentação dizendo a elas que aquelas e muitas outras estórias poderiam ser encontradas nos livros, em livrarias como aquela onde estávamos, e em bibliotecas, como a da escola onde elas estudam. Isso despertou a curiosidade da criançada, que logo foi atrás de ver os livros e descobrir onde estavam as estórias que contei para elas. Uma das mais procuradas foi a da "Festa no Céu".

Dever cumprido, com a certeza de que deixei alguma coisa boa com aquele pessoal. Mas gostaria muito que os pais pudessem empregar um pouquinho mais do seu tempo para apresentar os livros para seus filhos...

De qualquer forma, uma sementinha foi plantada.

Tive outras duas recompensas: um convite para dar um curso de contação de estórias para professores e bibliotecários de um colégio particular da cidade e outro para participar do primeiro FLIC - Festival de Literatura de Caruaru, em outubro, quando espero poder lançar meu primeiro livro destinado ao público infantil: "Galo rouco, tem rato no sino!"

É, esse foi mesmo um dia feliz...

domingo, 16 de agosto de 2009

Cigana Contadora de Estórias na Livraria Estudantil em Caruaru

Vou me apresentar na próxima sexta-feira, dia 21, às 10h, na 10ª Feira de Livros, Cultura e Conhecimento da Livraria Estudantil, aqui em Caruaru. Estou especialmente ansiosa já que passei mais de um ano sem me apresentar formalmente, primeiro por conta da gravidez, depois por estar cuidando do meu bebê.
Tenho lido muito, selecionando o repertório desse dia tão especial para mim, que marca a minha volta à atividade de contadora de estórias, e acabei me decidindo por quatro contos para apresentar para o público convidado: “Pedro Malazartes e a Sopa de Pedra”, “O Macaco e a Banana”, ambos do folclorista Câmara Cascudo, “Os Três Desejos”, do escritor e também contador de estórias Roberto Carlos Ramos, e “O Problema dos 35 Camelos”, de Malba Tahan (que já postei aqui).
Vou estrear figurino novo também. Espero que dê tudo certo.
Depois coloco aqui as fotos e como foi a apresentação.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Conto: "O problema dos 35 camelos"

Esse conto eu li no livro "Novas Lendas Orientais", do Malba Tahan - eita contador de estórias fantástico! Também pode ser encontrado no livro "O Homem que Calculava", do mesmo autor.

"Poucas horas havia que viajávamos sem interrupção, quando nos ocorreu uma aventura digna de registro, na qual meu companheiro Beremiz, com grande talento, pôs em prática as suas habilidades de exímio algebrista.
Encontramos perto de um antigo caravançará meio abandonado, três homens que discutiam acaloradamente ao pé de um lote de camelos.
Por entre pragas e impropérios gritavam possessos, furiosos:
- Não pode ser!
- Isto é um roubo!
- Não aceito!
O inteligente Beremiz procurou informar-se do que se tratava.
- Somos irmãos – esclareceu o mais velho – e recebemos como herança esses 35 camelos. Segundo a vontade expressa de meu pai, devo receber a metade, o meu irmão Hamed Namir uma terça parte, e, ao Harim, o mais moço, deve tocar apenas a nona parte. Não sabemos, porém, como dividir dessa forma 35 camelos, e, a cada partilha proposta segue-se a recusa dos outros dois, pois a metade de 35 é 17 e meio. Como fazer a partilha se a terça e a nona parte de 35 também não são exatas?
- É muito simples – atalhou o Homem que Calculava. – Encarrego-me de fazer com justiça essa divisão, se permitirem que eu junte aos 35 camelos da herança este belo animal que em boa hora aqui nos trouxe!
Neste ponto, procurei intervir na questão:
- Não posso consentir em semelhante loucura! Como poderíamos concluir a viagem se ficássemos sem o camelo?
- Não te preocupes com o resultado, ó Bagdali! – replicou-me em voz baixa Beremiz – Sei muito bem o que estou fazendo. Cede-me o teu camelo e verás no fim a que conclusão quero chegar.
Tal foi o tom de segurança com que ele falou, que não tive dúvida em entregar-lhe o meu belo jamal, que imediatamente foi reunido aos 35 ali presentes, para serem repartidos pelos três herdeiros.
- Vou, meus amigos – disse ele, dirigindo-se aos três irmãos -, fazer a divisão justa e exata dos camelos que são agora, como vêem em número de 36.
E, voltando-se para o mais velho dos irmãos, assim falou:
- Deverias receber meu amigo, a metade de 35, isto é, 17 e meio. Receberás a metade de 36, portanto, 18. Nada tens a reclamar, pois é claro que saíste lucrando com esta divisão.
E, dirigindo-se ao segundo herdeiro, continuou:
- E tu, Hamed Namir, deverias receber um terço de 35, isto é 11 e pouco. Vais receber um terço de 36, isto é 12. Não poderás protestar, pois tu também saíste com visível lucro na transação.
E disse por fim ao mais moço:
E tu jovem Harim Namir, segundo a vontade de teu pai, deverias receber uma nona parte de 35, isto é 3 e tanto. Vais receber uma nona parte de 36, isto é, 4. O teu lucro foi igualmente notável. Só tens a agradecer-me pelo resultado!
E concluiu com a maior segurança e serenidade:
- Pela vantajosa divisão feita entre os irmãos Namir – partilha em que todos três saíram lucrando – couberam 18 camelos ao primeiro, 12 ao segundo e 4 ao terceiro, o que dá um resultado (18+12+4) de 34 camelos. Dos 36 camelos, sobram, portanto, dois. Um pertence como sabem ao bagdáli, meu amigo e companheiro, outro toca por direito a mim, por ter resolvido a contento de todos o complicado problema da herança!
- Sois inteligente, ó Estrangeiro! – exclamou o mais velho dos três irmãos.
– Aceitamos a vossa partilha na certeza de que foi feita com justiça e equidade!
E o astucioso Beremiz – o Homem que Calculava – tomou logo posse de um dos mais belos “jamales” do grupo e disse-me, entregando-me pela rédea o animal que me pertencia:
- Poderás agora, meu amigo, continuar a viagem no teu camelo manso e seguro! Tenho outro, especialmente para mim!
E continuamos nossa jornada para Bagdá."

***
Glossário

Caravançará: refúgio construído pelo governo ou por pessoas piedosas à beira do caminho, para servir de abrigo aos peregrinos. Espécie de rancho de grandes dimensões em que se acolhiam as caravanas.
Bagdali
: Relativo a Bagdá, vindo de Bagdá.
Jamal: uma das muitas denominações que os árabes dão ao camelo.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Conto: "Dez anos de kest"

Essa é uma estória do mestre Malba Tahan, do livro "Lendas do Povo de Deus", muito divertida, que fez muito sucesso quando a contei.

Dez anos de Kest

Interessante seria, meu bom amigo, iniciar este conto à maneira dos escritores clássicos israelitas, citando cinco ou seis pensamentos admiráveis, colhidos nas páginas famosas do Talmude. Como recordar-me, porém, dos trechos mais belos da Sabedoria de Isreel, quando é tão fraca, incerta e claudicante a minha memória? Vem-me apenas à lembrança, neste momento, um velho provérbio muito citado pelos judeus russos: “Quando o homem é feliz, um dia lhe vale um ano”.
A verdade contida nesse aforismo é indiscutível. E a história, que a seguir vou narrar, poderá servir para ilustrar a minha asserção.
Vivia em Viena, há mais de meio século, um jovem chamado David Kirsch, filho de um milômed, homem prudente e sensato. Kirsch adornava o seu espírito com uma qualidade bastante apreciável: não ousava tomar resolução alguma de certa relevância sem se sentir esclarecido e orientado pelos conselhos dos mais velhos. Seu judicioso pai lhe dera a seguinte recomendação:
— Cabe-me dizer-te, meu filho, que deverás evitar qualquer casamento quando do consórcio resultar aproximação, por parentesco, com um judeu vermelho.
Com a prudência que a longa experiência da vida sói ensinar aos homens, o pai acrescentara:
— Se algum dia, porém, por triste fatalidade, caíres nas garras de um judeu vermelho, procura sem demora o auxílio de outro judeu vermelho.
Quis o jovem David conhecer, mais por curiosidade do que por outro motivo, a razão de ser daquele estranho conselho, mas o velho milômed recusara-se terminantemente a dar qualquer explicação, alegando que tinha, para assim proceder, motivos que de consciência não poderia revelar.
O jovem David Kirsch foi procurado por um agenciador de casamentos. Trocadas as saudações habituais, o agenciador assim falou, assumindo como sempre um ar de máxima reserva e discrição:
— Como sei que pretendes resolver do melhor modo possível o problema de teu futuro, com a escolha de uma companheira digna, quero informar-te que obtive para o teu caso uma solução admirável. A noiva que tenho em vista é formosa, de família honesta e, além do mais, muito culta e prendada.
— E o dote? — indagou David, grandemente interessado, procurando tocar com a máxima finura naquele assunto tão delicado.
— Quanto ao dote — aclarou logo o agenciador, com um sorriso que traduzia o orgulho de bom profissional — está combinado que será de mil coroas, e terás ainda dez anos de kest.
— Dez anos de kest! — repetiu David, numa sinceridade de veemente surpresa. — Mas isto é espantoso, inacreditável!
Sou forçado a interromper a presente narrativa para dar ao leitor não-judeu, isto é, ao meu bom amigo gohin, um esclarecimento que me parece indispensável.
O kest é costume tradicional entre os judeus. O pai da noiva, além do dote (que é de uso também entre os cristãos), concede ao genro, a título de auxílio para iniciar a vida, a permissão de viver durante algum tempo em sua casa, sem fazer a menor despesa, quer com a alimentação, quer mesmo com o vestuário. Esse período, durante o qual o pai da jovem toma a seu cargo a subsistência completa dos recém-casados, é denominado kest, e em geral varia de um a três anos. Para um jovem egoísta, sem ânimo para a vida, pouco inclinado ao trabalho, a oferta de um kest prolongado constitui uma isca irresistível. Era esse, precisamente, o caso de David Kirsch, indolente como um falso mendigo, amigo da boa-vida e do feriado permanente.
Dez anos de kest! Um judeu sensato não poderia hesitar. A cerimônia do noivado, com a clássica apresentação das famílias, foi marcada para alguns dias depois.
Quando David Kirsch foi levado à presença da sua noiva, ficou maravilhado. O agenciador não o havia iludido, pintando com as cores vivas do exagero os encantos da noiva prometida. A menina era uma judia realmente graciosa, esbelta, cheia de vida, e os dez anos de kest emprestavam-lhe ao olhar, ao sorriso e aos lábios todos os ímãs inconcebíveis da beleza. Rebla, a filha do rei de Gorner, não parecera mais sedutora aos olhos do grande Salomão. Dela diria certamente o poeta: “De longe parece uma estrela; de perto, uma flor”.
Dolorosa foi, porém, a surpresa do noivo judeu ao defrontar, pela primeira vez, com o seu futuro sogro. Pela cor fulva dos cabelos, pelas sardas que repintavam o carão avermelhado, era o velho um tipo perfeito e inconfundível de judeu vermelho.
Naquele momento, invadido por negrejante inquietação, recordou-se David do conselho que a prudência paterna lhe ditara: “Evitar qualquer aproximação, pelo casamento, com um judeu vermelho”. Mas que fazer, naquela dependura? A sua palavra estava dada. Ademais, acima de qualquer compromisso, esmagando dúvidas e receios, os dez anos de kest constituíam um argumento irrespondível, diante do qual desapareciam todos os motivos que militavam contra o consórcio que se lhe afigurava tão promissor.
Pouco tempo depois realizou-se o enlace nupcial, e o jovem passou a viver com sua adorada esposa o seu belo período de kest, em casa do rico judeu vermelho.
— Esse judeu vermelho — pensou David, altamente desconfiado com o caso — alguma peça desagradável prepara para mim. Custa-me acreditar que ele mantenha essa liberalíssima promessa dos dez anos de kest. Naturalmente terei, em sua casa, um tratamento tão vil e humilhante, que nem mesmo um cão seria capaz de aturar, e ao fim de dois ou três meses, é certo, serei forçado, pela situação, a procurar outro pouso e trabalho. Alguma perfídia o meu sogro já planejou contra mim!
Com grande espanto, entretanto, o jovem David verificou que o pai de sua esposa era de um feitio que desmentia por completo seus temores e desconfianças. O judeu vermelho mostrava-se delicado e afetuoso, e dispensava ao seu novo genro um tratamento principesco. Fazia multiplicar os pratos saborosos nas refeições, proporcionava-lhe passeios agradabilíssimos, dava-lhe roupas finas e enchia-o de presentes valiosos.
— Meu pai não tinha razão — meditava o jovem, refletindo sobre a vida regalada e invejável que desfrutava em casa de seu sogro. — Que outro marido poderá ser mais feliz do que eu? Minha esposa é encantadora; por longo prazo, sem o menor trabalho, preocupação ou contrariedade, terei nesta casa mesa sempre lauta, agasalho, carinho e consideração!
Ao cabo de alguns dias o velho judeu vermelho chamou o indolente marido de sua filha e interpelou-o, muito sério:
— Dize-me, ó David: és, na verdade, feliz na tua nova situação de homem casado e chefe de família?
— Muito feliz, meu sogro — confirmou o jovem, num retraimento de espanto. — Sinto-me aqui incomparavelmente feliz.
— Se assim é, o teu kest está terminado!
— Terminado o meu kest? — protestou atônito o marido parasita. — Mas se eu estou casado há pouco mais de uma semana! Como pode ser isto?
— Como pode ser? Nada mais simples. Vou provar claramente. Estás casado com minha filha há dez dias. Bem sabes que no livro dos provérbios encontramos exarada esta sentença: “Quando um homem é feliz, um dia vale um ano”. Logo, de acordo com esse tradicional provérbio, estás casado há dez anos! Amanhã, portanto, levarás de minha casa tua esposa e irás para a tua residência. Creio que deverás também procurar um emprego, um meio qualquer de vida, pois de mim já recebeste o necessário auxílio, o dote e o kest prometidos.
Diante da imposição do sogro, David sentiu-se presa de grande furor. Quis apresentar argumentos que militavam em seu favor, mas o astucioso judeu vermelho manteve-se intransigente, e não houve como levá-lo a reconsiderar a resolução que havia tomado, insistindo em afirmar que nada mais fazia senão atender à verdade contida no provérbio: “Quando o homem é feliz, um dia vale um ano”.
Não se conformava o rapaz com a idéia de ser obrigado a trabalhar para viver; e a situação a que fora atirado envenenou-lhe o espírito com todas as toxinas do rancor. Tinha sido indigno, a seu ver, o proceder do sogro. Prometera-lhe, sob palavra, dez anos de kest, e depois, por evidente má-fé, baseando-se num idiota brocardo judeu, reduzira o prazo a dez dias. Que tratante! Um grande velhaco! Quando o interesse estava em jogo, sabia transformar um simples provérbio em lei social!
— Meu pai tinha razão — murmurou David, recalcando os seus rancorosos impulsos. — Toda razão tinha meu pai. Pratiquei uma imprudência muito séria, fazendo-me surdo aos conselhos daquele que melhor do que eu deve conhecer a vida e os filhos de Israel.
Resolvido a não incidir uma vez mais no erro, o jovem recordou-se da segunda parte do conselho paterno, e foi, nesse mesmo dia, procurar um conhecido seu chamado Elias Bloch, também judeu vermelho, e pediu-lhe indicasse um meio que lhe permitisse sair da situação crítica em que se encontrava.
O inteligente Elias Bloch atendeu com amabilidade o jovem David, e depois de ouvir o minucioso relato da burla do kest, expediu uma risadinha seca e maldosa, e respondeu com um relâmpago de inspiração no olhar:
— Não vejo dificuldade alguma em resolver o teu caso. Irás amanhã à casa de teu sogro, e se seguires as minhas instruções, sairás vencedor nesse litígio.
No dia seguinte, David Kirsch, tendo nas mãos um exemplar da Torá — que é o livro da lei, entre os hebreus — foi ter à rica vivenda do seu astucioso sogro.
Depois de saudá-lo com certa reserva e cerimônia, como se as relações entre ambos estivessem profundamente abaladas, assim falou com teatral entonação:
— Por motivos muito graves sou forçado a vir agora à sua presença. Vou divorciar-me!
Divórcio! Esta palavra, para a família judaica, representa uma desgraça só comparável às maiores calamidades.
— Estás louco, rapaz! — protestou o velho, empalidecendo ligeiramente. — Bem sabes que o divórcio só pode ser obtido segundo a lei de Moisés. Que motivo poderá ser aduzido para justificativa dessa nódoa infamante com que pretendes golpear a minha família?
— Tenho a lei a meu favor. Como o senhor mesmo declarou e provou, vivi em sua companhia os dez anos de kest. Os doutores e rabis não ignoram que o Livro da Lei de Moisés diz com a maior clareza: “Quando a mulher não concebe ao fim de dez anos, o marido pode requerer o divórcio”. Ora, estou casado há dez anos e não tenho filhos; cabe-me, portanto, segundo a lei, o direito de repudiar minha esposa.
— Que brincadeira é essa, meu filho! — retorquiu o judeu vermelho, emergindo da sua estupefação e abraçando amavelmente o genro. — Afastemos de nós as idéias tristes, pois já não foi pequeno o susto com que abalaste meu coração de pai. Fizeste mal em tomar a sério o meu gracejo sobre o tal provérbio dos dias felizes. E se assim é, fica o dito pelo não-dito. Se eu prometi dez anos de kest, é certo que poderás viver todo esse tempo em minha casa.
E concluiu, com um gesto convencido e superior, passando lentamente a mão pelos cabelos avermelhados:
— Jamais deixei, menino, como bom judeu, de cumprir a palavra dada.


***
Fonte: Malba Tahan, Lendas do Povo de Deus – Ed. Conquista, Rio de Janeiro, 1964

Imagem: blog Pensando Alto

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Texto: "Formas de apresentação das histórias"

Passei um bom tempo sem escrever nem postar nada aqui no blog, envolvida com os preparativos da festinha de um ano da minha filha, Victoria, e com o planejamento do meu trabalho como contadora de estórias nesse segundo semestre. Já nesse mês de agosto, devo participar, novamente, da Feira de Livros da Livraria Estudantil, aqui em Caruaru. É um evento muito legal, com a participação de escritores e a visita de crianças de escolas da região. Da última vez em que participei, contei a estória da "Mulher que vivia numa garrafa de vinagre" (depois eu a coloco aqui) e a criançada da Escola Santa Clara gostou bastante. Difícil foi me deixarem ir embora, ficavam trazendo livrinhos, pedindo para eu contar as estórias... hehehe...
Este ano, estou ainda fazendo a seleção do que quero contar. Uma estória que fez bastante sucesso com a criançada foi a da "Rainha Rabo de Macaco", do Roberto Carlos Ramos, esse contador de estórias mineiro, cuja vida virou um filme que entrará em cadeia nacional de cinemas no dia 07 deste mês.
Bom, mas o tema que eu gostaria de trazer nesta postagem é a forma como as estórias podem ser apresentadas. Como meu personagem é uma cigana, que se movimenta bastante pelo espaço onde a contação está acontecendo, gosto muito mais de contar as estórias, sem recorrer a livros ou bonecos ou outros artifícios semelhantes. Não que eles não tenham seu valor. Têm sim, cada um tem sua proposta e sua função, como veremos adiante, nesse texto retirado de uma bela apostila preparada pelo setor de Evangelização Infanto-Juvenil do Centro Espírita Obreiros do Caminho.
FORMAS DE APRESENTAÇÃO DAS HISTÓRIAS

Estudar uma história é ainda escolher a melhor forma ou o recurso mais adequado para apresentá-la. Os recursos mais utilizados são:
1. A simples narrativa;
2. A narrativa com o auxílio do livro;
3. O uso de gravuras, de flanelógrafos, de desenhos;
4. Narrativa com interferência do narrador e dos ouvintes.

1- SIMPLES NARRATIVA
Mais fascinante de todas as formas, a mais antiga, mais tradicional e autêntica expressão do contador de histórias.
Não requer nenhum acessório e se processa por meio da voz do narrador, de sua postura. Este, por sua vez, com as mãos livres, concentra toda a sua força na expressão corporal. Lendas, fábulas e histórias recolhidas da tradição oral são melhor transmitidas sob a forma de simples narrativa e ainda é a maneira que mais contribui para estimular a criatividade. A utilização de material ilustrativo nos exemplos citados, poderia desviar a atenção do ouvinte, que deve estar fixa no narrador.

2 - COM O LIVRO
Há textos que requerem, indispensavelmente, apresentação do livro, pois a ilustração os complementa. Examinando-se livros onde se destaca a apresentação gráfica e a imagem é tão rica quanto o texto, verifica-se a propriedade do recurso.
Essa apresentação, além de incentivar o gosto pela leitura (mesmo no caso dos ainda não alfabetizados) contribui para resolver a sequência lógica do pensamento infantil.
Devemos mostrar o livro para as crianças virando lentamente as páginas com a mão direita, enquanto a esquerda sustenta a parte inferior do livro.
Narrar com o livro não é propriamente ler a história. O narrador a conhece, já a estudou e a vai contando com suas próprias palavras, sem titubeios, vacilações ou consultas ao texto, o que prejudicaria a integridade da narrativa.

3 - COM DESENHOS
É um recurso atraente no caso de histórias de poucos personagens e traços rápidos. Pode ser desenhado no quadro de giz ou papel de metro.
Aguça a curiosidade dos ouvintes.

4 - COM GRAVURAS
As gravuras favorecem, sobretudo, as crianças pequenas, permitem que elas observem detalhes e contribuem para a organização do pensamento. Isso lhes facilitará mais tarde a identificação da ideia central, fatos principais, fatos secundários, etc.
Antes da narrativa, empilham-se as gravuras em ordem viradas para baixo. À medida que vai contando, o narrador as coloca uma a uma no suporte próprio.

5 - COM O FLANELÓGRAFO
Este recurso é ideal para ser usado nas histórias em que a personagem principal entra e sai de cena, movimenta-se num vai e vem durante o enredo.
Na gravura reproduz-se a cena. No flanelógrafo, cada personagem é colocado, individualmente, ocupando seu lugar no quadro, o que dá a ideia de movimento.
O mais importante nessa técnica é a ação do personagem principal, num movimento constante.

6 - COM INTERFERÊNCIAS DO NARRADOR E DOS OUVINTES
Seja qual for a forma de apresentação, pode-se introduzir a interferência, se o texto a requer ou sugere.
A interferência resulta da criatividade do narrador, que a incorpora ao texto para tornar a narrativa mais atraente. É um excelente recurso quando se trata de público numeroso, em locais abertos, facilitando a concentração dos ouvintes. No entanto, é preciso cuidado para não transformá-la em programa de auditório, pois ela deve surgir em decorrência do enredo e ser mantida em equilíbrio sob o controle do narrador.
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Imagem do blog Peregrina Cultural

Conto: "O semeador de tâmaras"

Esta versão vem do livro El saber es más que la riqueza, de  Silvia Dubovoy O semeador de tâmaras Em um oásis perdido no deserto, o velho El...