Como pesquisadora da literatura infantojuvenil, sempre me deparo com preciosidades, como esse almanaque, O Tico-Tico, primeira revista em quadrinhos publicada no Brasil, aliás primeira publicação nacional destinada às nossas crianças, antes mesmo das estórias de Monteiro Lobato. Foi lançada pelo jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva (1866-1932) no dia 11 de outubro de 1905, tinha periodicidade semanal e sobreviveu até a década de 60. Seu nome veio das "escolas de tico-tico”, que era como eram chamados os jardins de infância. Seu conteúdo é um primor. A respeito da relevância dessa obra para a formação da criançada, o grande poeta Carlos Drummond de Andrade disse: "O Tico-Tico é pai e avô de muita gente importante". Se está curioso para conhecer O Tico-Tico, a Biblioteca Nacional disponibilizou um grande acervo. Vale a leitura, o encantamento é garantido, principalmente pelas fotos das crianças do século passado, suas vestimentas e cortes de cabelo, os anúncios comerciais e mesmo os textos. Uma belezura!
De lá, da edição de 1911, cuja capa você confere acima, pincei o conto "A rainha de um dia - conto do Dia de Reis", já inserido no meu banco de estórias para contar 😊
A RAINHA DE UM DIA
Conto do Dia de Reis
Isto passou-se há muito tempo, num
antigo castelo construído à margem de um rio. O senhor dessa magnífica vivenda
havia já bastante tempo que não ria, muito triste por haver perdido, de uma só
vez, seus três filhos numa guerra. Destes só lhe restava uma lembrança – uma
menina, filha do filho mais velho.
Tal legado ainda mais acabrunhava o
velho castelão.
Nessa época festejavam-se os Reis,
isto é, dividia-se entre as pessoas da família e amigos um grande bolo onde se
ocultava uma fava. Aquele em cujo pedaço fosse encontrada a fava era rei
considerado por um dia e podia escolher quem quisesse para compartilhar seu
trono. Era senhor absoluto durante todo o tempo do seu reinado.
Ora, apesar das suas tristezas o
castelão consentiu que se festejasse também o dia dos Reis no castelo afim de
divertir sua neta, a pequena Lúcia.
Mas só deu consentimento depois da
seguinte recomendação:
- Se a fava cair por sorte a uma
moça ou senhora, previno que não quero ser escolhido para rei. Com esta
condição, permito que se divirtam e assistirei à festa. Quero que todos
brinquem muito e para isso não tomo parte com a minha tristeza. Como sabem,
para mim não há mais diversões na terra. Os velhos são velhos e os moços,
folgazões; portanto, tristezas para uns e alegrias para outros.
À noite, sentaram-se todos à mesa: o
castelão na cabeceira, depois crianças, amigos e servidores. O bolo foi
carregado numa espécie de andor coberto por uma toalha alvíssima de linho e
inteiramente bordada com ramos e rosas do Natal.
Dividiram-se entre todos, reservando
a parte do pobre. A fava caiu por sorte a Lúcia que, com toda a majestade que
lhe investia a cerimônia, deixou-se paramentar e cingir a fronte com uma
belíssima coroa. Diante dela foi colocada outra coroa ainda mais linda.
Lúcia lançou os olhos pelas pessoas
presentes e estava muito triste por não ter encontrado uma ao seu agrado para
rei, quando bateram à porta.
Vinham reclamar a parte do pobre. E
a pessoa que assim fazia era um velho andrajosamente vestido, tendo um gorro na
cabeça. Sob o gorro apareciam mechas de cabelo em desalinho. Ao pedir a sua
parte, o pobre tremia.
Lúcia levantou-se e correu até ele
com a coroa na mão, como era de costume.
- Pobre como és, – disse ela –
faço-te rei: manda e serás servido.
Ele pediu então, com voz mais calma:
- Gentil rainha, peço-te um lugar à
tua direita e para meu companheiro, que ficou da parte de fora do castelo,
outro lugar à tua esquerda.
O castelão, indignado com a escolha
feita por Lúcia e com a audácia do pobre, exclamou:
- Olá, que pensas então? Achas
que...
Mas Lúcia lhe disse:
- Lembre-se que neste instante és um
servo desse pobre.
Ela sorria; e é preciso acrescentar
que tinha o rir mais bonito dentre os risos mais bonitos, que emolduravam de
vez em quando o rosto de uma santa.
De seu barrete de seda azul, bordado
de prata escapavam-se duas compridas tranças de pareciam feitas de ouro; suas
faces róseas pareciam duas auroras; seus olhos, estrelas e flores, brilhavam
numa suave luz azul.
O castelão, no entanto, adorava esta
criança, não devido à sua beleza, rara e soberana, mas porque parecia feita de
graça e de sorriso.
E só ela conseguia por vezes
diverti-lo.
Não ousou magoá-la e sentidíssimo
murmurou:
- Pois bem, pobre de ontem e pobre
de amanhã, sê rei por hoje e mostra-nos, se tens bastante audácia para isso,
como se deve sustentar um cetro!
O pobre levantou-se, sacudindo a
cabeça; a barba cobria-lhe por completo o peito. Sua voz agora, cheia e
vibrante, ocupava toda a sala quando dava uma ordem.
- Vão buscar meu companheiro;
encontrá-lo-ão sentado no primeiro degrau do castelo.
Deram-se pressa em cumprir as ordens
do novo rei, e uma criada conduziu pela mão um segundo pobre, também mal
vestido e coberto por uma capa em frangalhos.
- Este tipo parece que nunca lavou o
rosto, - disse o castelão zombando.
Mas o primeiro pobre acudiu:
- Não, porque ele jurou não lavá-lo
até que houvesse beijado aqueles a quem ama na terra. Vamos, pois, jantar!
- Pois não – atalhou a pequena
rainha – És rei, mandas, não pedes.
Serviram-lhe o que restava, um
quarto de javali.
O rei de um dia cortou um soberbo
pedaço, depois outro, outro ainda sem neles tocar. Então, o castelão, não pode
conter uma gargalhada. Todos o acompanharam.
- Pena é que não tenhamos um outro
quarto. Esse pobre acharia lugar para guardá-lo. Seu companheiro não faz senão
regar seu primeiro pedaço. Teria jurado comer de tal forma?
O primeiro pobre estendeu seu copo e
exclamou:
- Que todos aqui bebam quando o rei
beba. Bebe, linda rainha de olhos azuis, bebe senhor Hugo, bebe tu também,
senhor dos oceanos! Copos ao alto! E tu, nobre avó de minha rainha, se quiseres
alguma coisa é só pedir, pobre como sou, tenho algum poder...
Mas o velho castelão passou a mão sobre
a fronte como para afastar um mau pensamento.
- Cala-te – disse-lhe – rei de
mentira! Esse nome, Hugo, que dás a teu companheiro é um nome de nobreza. Onde
o obtiveste? Não é dado a qualquer mendigo usá-lo. Ah, meu filho mais velho
assim se chamava, e há dez anos que morreu. Rei coroado de papel e ouro falso,
acabou-se a festa. Irão encher teu saco para que possas saciar a fome, que é
grande. Tenho piedade de ti e não levo a mal tuas brincadeiras. Se eu tivesse
que pedir alguma coisa, seria tornar a ver meu filho Hugo, que ninguém me pode
trazer. O imperador, ele próprio, com todo o seu poder, não conseguiria
ressuscitá-lo. Portanto, não me perguntes se quero alguma coisa.
O pobre pôs-se de pé altivamente,
colocou a mão sobre a cabeça do seu companheiro, e disse:
- Hugo, levanta-te. Permito agora
que fale. Homem, aqui está o teu filho: só dez anos de cativeiro não o
desfiguraram completamente, reconhece-o.
O companheiro do pobre, tirando a
capa, ajoelhou-se aos pés do seu pai. Este, semi-louco de alegria, reconhecia-o
entre lágrimas. Depois, o filho, desprendendo-se dos braços do pai, que o
enlaçava, dirigiu-se ao pobre dizendo:
- Meu pai, esse pobre que aí vês
está habituado a coroas. É chamado em toda parte o Grande. Sim, é o imperador
Othon, nosso chefe. Foi ele quem me resgatou do cativeiro e aqui me trouxe.
Todos os que aí se encontravam,
confusos e mudos, conservaram-se de pé pois o imperador Othon o Grande
inspirava respeito pela sua valentia e saber.
O velho castelão estendeu a mão ao
imperador, que não havia reconhecido sob os andrajos, e disse:
- Imperador, minha vida te pertence,
bem como a de todos os meus e como a do meu filho, que acabas de trazer. Agora
possa morrer, tenho alguém que me sucederá.
Hugo tomou a filha e a mulher nos
braços, apertando-as contra o coração.
O imperador depositou sobre a fronte
da menina um terno beijo.
- Pequena rainha – disse ele – serei
teu pobre e o rei de tua escolha. Dentro de oito anos, se eu ainda viver,
leva-me a fava, que ficou em meu copo, e a coroa, que me destes. Ordeno. Parto
deixando todos felizes. Proíbo que me sigam.
Detendo com um gesto aqueles que
queriam lhe agradecer, deixou a sala, desceu a grande escada e tocou uma
campainha de prata, que trazia escondida no cinto. Então, ouviu-se uma
cavalgada, e viu-se pelas janelas do castelo os homens de armas que vinham
buscar o imperador Othon.
Oito anos mais tarde, a filha do
conde Hugo levou a fava e a coroa; o imperador, em troco desses objetos,
deu-lhe um saco com ouro para o seu dote e, em troca da coroa, outra de conde,
dando-lhe um lindo rapaz para esposo.
Até o fim de sua vida, teve muita
honra em ser seu ‘pobre’ e cultivar sua amizade. Chamava-a ‘a pequena rainha’ e
fez guardar a fava em seu tesouro, ao lado das pérolas raras.
Tinha garbo em dizer:
- Aqueles que me fizeram imperador,
escolheram-me em meu poder. Mas aquela que me fez rei, escolheu-me na pobreza.
Esta será para sempre a minha rainha.
ALMANACH O TICO-TICO, 1911