Antes de iniciar a segunda parte deste livro, a qual apresenta as técnicas que eu utilizo para a narrativa do conto, gostaria de lançar algumas perguntas que todo candidato a contador de histórias deveria se fazer:
- Por que contar histórias?
As respostas que encontrei para esta indagação foram diversas, e neste percurso procurei me situar numa progressão de diferentes níveis da realidade que passam do plano material ao espiritual, pois creio que contar histórias é uma atitude multidimensional. Ao contar histórias atingimos não apenas o plano prático, mas também o nível do pensamento, e, sobretudo, as dimensões do mítico-simbólico e do mistério. Assim, conto histórias para formar leitores; para fazer da diversidade cultural um fato; valorizar as etnias; manter a História viva; para se sentir vivo; para encantar e sensibilizar o ouvinte; para estimular o imaginário; articular o sensível; tocar o coração; alimentar o espírito; resgatar significados para nossa existência e reativar o sagrado.
- Para quem eu conto histórias?
Para quem deseja ouvir. Porém, devemos ter claro que há diferenças entre contar história para uma única pessoa, ou para um grupo. Narrar para uma criança em particular, seu filho por exemplo, num momento de disponibilidade de ambos, quando as energias do contador e do ouvinte estão voltadas para este ato, é uma experiência única, principalmente se conhecemos esta criança e sabemos quais são as suas necessidades naquele momento. Nesse caso é possível escolher o conto que mais convém às suas expectativas, atuando no sentido de chegar mais próxima à sua demanda. A narrativa se tornará personalizada, o volume de voz poderá ser menor e a performance mais contida.
Ouvir um conto antes de dormir, embalado por uma voz que traga referências confortantes, é um presente raro, como dormir embalado por vozes angelicais. Porém, quantas crianças têm este prazer satisfeito dentro da sua própria casa, ou melhor, quantos pais se dispõem a essa tarefa? Concordo que chegar em casa depois de um dia exaustivo tira o ânimo de qualquer um, então, como encontrar energias para ainda contar histórias? Mas quem disse que criar filhos é uma tarefa fácil.
Educar é também desfrutar o prazer de estar junto numa atividade gostosa. É descobrir que sempre há mais energia do que pensamos ter, e que ela poderá ser dirigida para preparar o sono do filho, por exemplo. Há que ter disponibilidade, e se lançar com o coração.
Outra situação: lá está você com um grupo de vinte, trinta crianças, cada uma com sua história de vida, expectativas diferentes, e muitas delas sem o hábito de ouvir – e não falo apenas em ouvir histórias, falo do ato voluntário e concentrador que permite entender os sons através do sentido da audição, e lhes atribuir sentidos.
Vamos imaginar: você está com todas as crianças à sua volta, as vinte, trinta. Logo, a técnica deverá atingir a todas, simultaneamente. Neste caso não será possível individualizar a narrativa, escolhendo um conto que caiba dentro da urgência de uma criança, mas, sim, perceber o que mobiliza o grupo, e trazer um conto que possa atuar no conjunto, deixando que cada uma delas retire do conto o que mais necessita naquele momento. Ou ainda, ir pela intuição, o que é mais eficiente. Não dá para esquecer que esta será uma experiência coletiva e que você terá de lançar mão de alguns recursos para que esta tarefa se realize satisfatoriamente.
Seja narrando para uma ou várias crianças é fundamental que se conte com o coração, e, se falo desse segredo como o primeiro da lista, é por considerá-lo a premissa máxima para que o narrador tenha sucesso na sua proposta.
Se quisermos que a narrativa atinja toda a sua potencialidade devemos, sim, narrar com o coração, o que implica em estar internamente disponível para isso, doando o que temos de mais genuíno, e entregando-se a esta tarefa com prazer e boa vontade.
Ao contar doamos o nosso afeto, a nossa experiência de vida, abrimos o peito e compactuamos com o que o conto quer dizer. Por isso torna-se fundamental que haja uma identificação entre o narrador e o conto narrado.
Antes de sensibilizar o ouvinte o conto precisa sensibilizar o contador. A maneira como enxergamos o conto será a mesma maneira com que o outro irá vê-lo. Se o considerarmos uma mera distração e entretenimento, será assim que ele irá soar; porém, se acreditarmos que ele pode ser uma pequena luz lançada no nosso caminho, ele será ouvido como tal. Não é por acaso que Lewis Carrol se referia aos contos de fada como presentes de amor.
O envolvimento afetivo com a história narrada permite maior flexibilidade ao narrador, pois ele poderá perceber como ela atua junto aos ouvintes, e assim conduzir a narrativa para que aquelas demandas sejam atendidas. Cada narrador imprime sua personalidade ao conto, priorizando passagens que mais lhe impressionam , reforçando alguma imagem que lhe toca de uma maneira especial, uma intenção que considera primordial, e isto é natural, se pensarmos na narrativa como uma atividade dinâmica que atua sobre os diferentes níveis de realidade.
São essas identificações entre narrador X conto narrado que fazem a diferença; ou existe essa integração, ou a narrativa deixa de ser uma experiência compartilhada, e passa a ser um simples repasse de informação, e nesse caso a história nem precisaria ser contada.
Compartilhar: tomar parte de alguma coisa, estar com – um verbo importante para se conjugar.
Compartilhar significa também acreditar naquilo que se está vivendo. O ato de compartilhar é tão poderoso que torna-se impossível dimensionar os seus efeitos sobre nós.
Lembro-me de uma situação onde eu narrava As três penas, dos Irmãos Grimm.
Ao acabar a narrativa um garoto de nove ou dez anos aproximou-se, e sem falar uma palavra me abraçou. Ficamos lá, grudados, sob o signo de kairós, num espaço onde cronos foi deixado de lado, compartilhando uma emoção única, depois do que ele me olhou nos olhos e disse: “Obrigado”, e foi embora.
É importante observar que a história que ele ouviu faz parte de um ciclo de contos de fadas cujo tema são os três irmãos, onde os dois primeiros são espertos, e o terceiro é aquele considerado tolo e inapto, porém é ele quem realiza as tarefas ordenadas pelo pai, e, assim, herda a sua coroa.
Apesar de não conhecer aquele menino concluí que em algum momento da sua história pessoal ele também foi considerado “o bobo”, e ouvir aquele conto lhe trouxe um alento, a esperança de que, também ele, poderia se sair bem nas suas tarefas e herdar, quem sabe, o sorriso e a aprovação de alguém que lhe fosse especial.
Isto me leva a citar outra vez Bettelheim, quando ele diz que “só a criança pode determinar e revelar pela força com que reage emocionalmente àquilo que um conto evoca na sua mente consciente” (Bettelheim, 1980: 26).
Por contar com o coração, quero dizer também que acredito numa educação onde está presente o afeto e não apenas o impulso profissional em repassar conhecimentos, visando a formação técnica do ser humano.
Penso que educar relaciona-se com este estar com, implicando numa troca de experiências que tem como base o respeito mútuo e o reconhecimento dos afetos.
Educar implica em amorosidade. Acredito que esta possa ser uma das vias de acesso não somente ao conhecimento formal, mas ao desenvolvimento do ser, objetivando torná-lo mais humano.
Somos carentes de experiências que dêem significados á nossa existência. Temos total domínio sobre o que nos rodeia numa dimensão prática, material. Assistimos aos noticiários da TV, lemos todos os jornais diários, mas pouco sabemos sobre a nossa verdadeira natureza. Nascemos e fomos desconectados da nossa origem, nos voltamos para o exterior, para a sobrevivência do corpo, e que sobrevivência! Entramos em viagens desvairadas, algumas vezes sem volta, através das drogas, bebidas, sexo e poder. Ficamos vagando, com o coração inquieto e pulsando de insatisfação.
A literatura para o espírito e os grandes pensadores foram banidos das prateleiras.
Os meios de comunicação nos oferecem uma avalanche de inutilidades que entorpecem os sentidos. O lazer se tornou uma indústria fértil, promissora e deseducadora, que causa mais ansiedade que prazer, e o barulho é a tônica da atualidade. Vivemos um tempo onde ter vem antes do ser, como em outros tempos pensar veio antes do existir.
Para onde ir? Este questionamento não é novo. Já não há instituições que se proponham à incômoda tarefa de oferecer ao espírito vivências que venham nutri-lo.
Correr para onde?
Aonde a criança vai encontrar um caminho que lhe assegure que a vida vale a pena ser bem vivida, mesmo não sendo cor-de-rosa, como querem muitos? Que vamos encontrar sim a dor, a frustração e muitos não pela frente, mas ao permitirmos que eles andem ao lado da alegria e dos sim seremos mais plenos. Onde buscar imagens significativas, símbolos referenciais que auxiliem um crescer íntegro, sob quaisquer circunstâncias?
O mito pode restabelecer este caminho rumo à inteireza do ser, conectar-nos com o sagrado em nós. O conto de fada pode reassegurar a esperança. Os contos de ensinamento podem indicar valores que estão caindo em desuso e reafirmar que ser bom não quer dizer ser bobo, e aceitar a tudo calado e sem discernimento.
Se formos tocados pelas mensagens dos contos e meditarmos a partir deles apreenderemos o que eles querem dizer, e talvez seja possível passarmos adiante com uma voz diferenciada, o que eles já disseram e continuam dizendo. É possível que também o nosso espírito seja alcançado, e isso é o que quero dizer com tornar-se mais humano, ser atingido, ter a consciência de que há outras necessidades a serem atendidas que as meramente materiais.
Estamos diante de um exercício de vida, e quanto mais cedo nos identificarmos com ele mais recursos internos iremos desenvolver e, quando nos deparamos com as situações inevitáveis insolúveis que a vida nos apresenta, como os mistérios do nascimento, vida e morte, talvez estaremos mais preparados para aceitá-los e vivê-los dignamente.
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Contar e encantar: Pequenos segredos da narrativa / Cléo Busatto. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003.
Páginas 45/51